segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

A essência do amor (Walber Wolgrand)

Cultivamos a idéia de que o amor
É um sentimento que não nos atormenta,
Que não nos deixa inquieto e não nos perturba.
Cultivamos a idéia de que o amor
É um sentimento diferente da paixão,
Que não nos faz agir de forma insana,
Que não nos causa insônia,
Que não nos faz ridículos.
Cultivamos a idéia de que o amor
É um sentimento que não nos deixa louco
(que não é pra porra-louca).
Cultivamos a idéia de que o amor
É um sentimento que não nos deixa instável
No pensamento, no sentimento e na ação.
Cultivamos a idéia de que o amor
É um sentimento que não nos faz egoístas,
E que as nossas ações, mesmo as que tentam impor algo,
São para o bem do outro,
Porque amar é querer bem a coisa amada.
Cultivamos a idéia de que somos amadores de longa data,
E o que sentimos, seja lá o que for, é amor (quem vai nos contradizer?).
Se for mentira – é só mentira – não é pecado...
E, por amor, Deus perdoa.
Cultivamos a idéia de que o amor
É um sentimento que justifica a surra que não se dá,
O beijo que se dá, a mão que se estende, a cobrança que se faz...
Cultivamos tantas idéias sobre o amor
Que podemos dizer que o amor é um sentimento
Que justifica a cobrança que não se faz,
Porque quem ama não é egoísta;
Que justifica a mão que não se estende,
Porque quem ama não carrega, educa;
Que justifica o beijo que não se dá,
Por que quem ama “não seduz o que não pode cultivar”;
Que justifica a surra que se dá,
Porque quem ama disciplina o espírito;
Que justifica a mentira que se conta;
Porque quem ama protege o outro;
Que justifica os sentimentos mais estrambóticos,
Porque quem ama é sentimental;
Que justifica a agressividade e a intolerância,
Porque quem ama tudo suporta;
Que justifica a loucura que se faz,
Porque somente quem ama faz loucuras de amor;
Que justifica as ações ridículas e insanas,
Porque quem ama não age lógica e racionalmente;
Que justifica as noites de insônia,
Porque quem ama sonha acordado;
Que justifica a inquietude do espírito,
Porque quem ama “não sossega a coisa amada”;
Que justifica o desamor,
Porque quem ama é humano,
Logo suscetível de toda sorte de coisas;
Que justifica... Que justifica... Que justifica...
Assim, sob a égide do amor podemos explicar e justificar
Todos os fatos e atos humanos – até os omissivos,
Ancorados na crença de que a esse sentimento
Não se apruma definição possível,
Tornando-o ontologicamente íntimo do ser amante.
Mas, apesar da inconteste falta de objetividade,
Nada impede que investiguemos a sua natureza volátil
Na busca de algum elemento ou princípio que nos oriente
À compreensão da sua sutil e difusa existência:
Como age o amante? De qualquer maneira.
Por quê? Porque tem necessidades.
Para que? Para satisfazê-las.
Onde? Em qualquer lugar.
Altruísmo? Hipocrisia.
Separação? A morte.
O outro? Um meio.
Sim? Não.
Não? Talvez.
Humano? Mítico.
O que é? Egoísmo.
Bom? Enquanto saciar.
Eterno? “Enquanto durar”.
A paixão? Seu principal alimento.
A dor? A garantia da sua existência.
Estável? Somente enquanto espiritual.
Liberdade? Dentro dos limites de quem ama.
Coerente? Somente se pensado, pois a sua vivência
Está afeita a todo tipo de acontecimento ligado ao homem
Enquanto um ente solitário, limitado e carente, logo predisposto
A “construí-lo” como lhe aprouver, porque enquanto construção humana
O amor pode ter a forma que o homem quiser,
Isto é, a “ESSÊNCIA” que o homem quiser.

domingo, 18 de dezembro de 2011

A Estado na prática é uma teoria (ou “O poder é UNO”)


Os filósofos Hobbes e Rousseau ao tentarem fundamentar a instituição do Estado Civil Moderno, em contraposição ao Estado Absoluto (“legitimado por Deus”), especularam, cada um a seu modo, sobre um momento em que a humanidade teria vivido sem a tutela de um poder central unificador: o estado de natureza. Nesse momento o homem gozaria, dentre outras coisas, da liberdade natural, cujo exercício tornaria a vida humana instável, curta, bruta e insegura. Para superar essas dificuldades os seres humanos teriam inferido – pelo uso da razão – a necessidade de firmar, entre si, um grande pacto, transferindo o poder individual que dispunham a um ente abstrato (e superior) capaz de organizar a vida gregária e garantir a obtenção e preservação do bem maior: a paz.

A vida ordenada e pacífica seria o fim último dessa magistral criação humana e somente faria sentido a sua manutenção enquanto pudesse garantir aos seus jurisdicionados esses bens, sendo teoricamente possível a ruptura do grande pacto social em caso de inobservância dos termos contratuais. Isso porque o poder não mais adviria de Deus, mas do próprio homem, logo quem quer o recebesse deveria exercê-lo em prol de quem o delegou, seja num regime monárquico, oligárquico ou democrático.

Mas se o Estado é um ente abstrato (fruto da imaginação humana) ele precisaria da ajuda do seu criador para realizar os seus objetivos. Logo, quem garantiria que ele não seria apenas um instrumento para uma nova forma de exercício arbitrário do poder? Para minimizar esse dilema outro grande pensador político da modernidade, Montesquieu, imaginou a necessidade de o Poder Estatal ser exercido de forma tripartida. Inferiu que a administração centralizada poderia concorrer para o retorno ao Estado absoluto de outrora. Concebeu, assim, a divisão do Estado em Legislativo, Executivo e Judiciário. Como a "Santíssima Trindade", o Estado Moderno é Uno e Trino ao mesmo tempo. Mas como compreender isso? Na religião a compreensão não é necessária, a confiança basta. Mas quando a criação é humana, a justificativa se faz imperiosa. Para explicar esse acontecimento podemos utilizar um único conceito: a IMPESSOALIDADE. Era preciso despersonalizar o Estado e, para tanto, dividi-lo. É como uma luta contra um inimigo qualquer: convém dividi-lo para melhor dominá-lo. O mais inusitado é que as partes não estariam submetidas umas às outras, mas, paradoxalmente, estariam no mesmo nível de poder, condição “sine qua non” para se fiscalizarem mutuamente e impedirem a supremacia de uma única instância de poder. Nisto a solução montesquiana parecia teoricamente válida, pois somente um poder que esteja no mesmo nível pode limitar outro. Mas como realizar isso na prática?

Por outro lado, nunca é demais lembrar que o Estado, moderno ou não, foi concebido pelo homem, logo não seria imprudente asseverar que ele objetiva atender a um propósito eminentemente humano. Além do mais, os filósofos que o conceberam, por serem herdeiros da tradição metafísica, o pensaram de forma idealizada, desconsiderando muitas variantes que o compõe ou que a ele estão agregadas. Imaginaram um Estado capaz de impor limites ao egoísmo natural, mas nada falaram sobre a possibilidade desse grande monstro ser domesticado e adestrado para atender aos interesses pessoais daqueles que o controlam.

Quem mais se aproximou dessa linha de raciocínio foi o filósofo francês Etiene de La Boétie, o qual, embora tenha vivido no século XVI, preconizou que um novo modelo de Estado em nada se diferiria do anterior (absoluto). La Boétie, ao falar do poder estatal absoluto (Discurso da servidão Voluntária), desviou o foco das especulações para o homem. Disse que, na busca e manutenção de bens materiais e poder político, o homem prefere se aliar com o seu pretenso adversário que combatê-lo, porque se beneficia mais com os acordos que com os conflitos necessários ao equilíbrio no exercício do poder. Em outras palavras, reconheceu que no mundo humano o individual se sobrepõe ao coletivo. Por isso é mantida uma estrutura de poder que teoricamente poderia ser facilmente destruída, mas que é preservada pela conveniência que enceta aos que exercem o poder, nos diversos níveis, e são beneficiados.

Como exemplo categórico de que o Estado Moderno está longe de atender ao propósito pelo qual foi instituído, temos o emblemático caso da "Res-pública democrática brasileira". No Brasil, os poderes, em vez de se auto-limitarem, como imaginou Monstequieu, se promiscuem. A Administração (o Executivo) nomeia os Magistrados dos graus mais elevados, logo é compreensível que desses obtenha incontidos favores. Também concede cargos e financia obras para os Legisladores em troca de leis convenientes aos seus propósitos, nem sempre honestos e voltados ao bem geral. Por sua vez os julgadores, prevalecendo-se da falta de objetividade do direito, julgam as demandas ao sabor de seus interesses, garantindo prerrogativas que, guardadas as devidas proporções, em nada ficam a dever aos déspotas medievais. Ainda se prevalecem do famoso jargão ideológico: “Decisão judicial não se discute, cumpre-se”. Por outro lado os nossos Legisladores de plantão agem como verdadeiros comerciantes: vendem o seu produto para quem lhes pagar melhor. Esse movimento, cíclico e permanente, caracteriza o “modus operandi” do exercício do Poder Estatal brasileiro, demonstrando o quão ingênuos foram os filósofos contratualistas.

Diante da indiscutível dificuldade de operar o modelo metafísico do Estado Moderno no Brasil, fez-se um ajuste providencial, criou-se o redundante Ministério Público, com a responsabilidade de ser o guardião da ordem jurídica. Ora, qual a necessidade de criar um ser incumbido de fazer aquilo que as instâncias superiores (Executivo, Judiciário e Legislativo) já o são? E o que é mais estranho: com total dependência e poderes inferiores aos dos seus parentes mais ilustres.

Depreende-se da estrutura de compadrio da Res-pública Brasileira que o Estado é novo, mas o homem ainda é o mesmo egoísta de sempre. E que, no fundo, a razão apenas criara uma forma nova de exercício do mesmo poder arbitrário de outrora, agora escamoteado e legitimado sob o manto do “BEM COMUM”. Mas, para os incautos cidadãos brasileiros, vivemos numa “República Democrática de Direito”.

Tenho a impressão que os filósofos contratualistas ao especularem sobre um tipo de exercício do poder dentro de certos limites, em contraposição às formas abolutas de governo, não consideraram que o Estado, seja qual for a sua forma ou modalidade, é apenas um instrumento para o homem realizar o seu intrínseco desejo de dominar os outros humanos. Por isso, criou-se apenas novos instrumentos para velhos propósitos, ou seja, efetivamente um corpo político com vsitas ao bem comum jamais existiu e jamais existirá, porque o Estado, democrático ou não, na prática é uma teoria.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A Filosofia e a Bandeira do Brasil (Ou: "O símbolo e a coisa simbolizada")



Patria minha (Vinícius de Moraes)

Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamem
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!
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Em 2002 a UNESCO instituiu o “Dia Mundial da Filosofia”. Foi decretado que na terceira quinta-feira do mês de novembro, de cada ano, a atividade filosófica seria homenageada. Neste ano (2009) o dia Mundial da Filosofia, dia 19, para nós brasileiros, coincidiu com o “Dia da Bandeira”. Até ai tudo bem, mas o que me chamou a atenção foi a maneira como alguns telejornais tupiniquins abordaram essa data comemorativa.

A TV Cultura exibiu uma reportagem sobre o “Dia da Filosofia”. O repórter perguntava às pessoas nos bares, praças, ruas, etc. o que era a filosofia. As respostas foram as mais lamentáveis possíveis. Quase a totalidade dos entrevistados se referiu à atividade filosófica com “máximas” e “jargões”. A filosofia foi apresentada como algo preconcebido, um produto pronto para ser consumido. É claro que a filosofia não é um “enlatado”, mas pode partir dele para ajudar o homem a compreender as coisas do cotidiano. Afinal, os “enlatados” também fazem parte da vida. Tudo porque a filosofia é um olhar incomum sobre as coisas comuns, por isso ela se afasta do “senso comum”. O filósofo é aquele sujeito que diante de um simples acontecimento, tenta compreendê-lo a partir da relação que ele possui com outros fatos que, aparentemente, são independentes, mas, se examinados acuradamente, se inter-relacionam. Ele é um artista que constrói a sua obra, olhando para o entorno dela.

Já no telejornal da Rede Globo, em ritmo “decrépito-ufanista” foi lembrado o “Dia da Bandeira”. Como ocorre todo ano, registraram lindas e inocentes crianças desenhando e pintando o símbolo nacional, numa imagem doce e angelical. Na rua, algumas pessoas diziam o óbvio e, em certos casos, se declaravam emocionadas, apesar de conseguirem, no máximo, balbuciar duas ou três palavras quando perguntadas sobre o significado da Bandeira do Brasil. De quebra, a reportagem mostrou alguns militares cultuando o símbolo em demonstração pública de respeito e adoração.

Apesar de reducionistas, se não fossem essas reportagens a Filosofia e a Bandeira do Brasil teriam passado despercebidas da maioria do povo brasileiro no dia instituído para as suas homenagens. Além da coincidência do dia comemorativo e do desprezo do povo brasileiro, o que a Filosofia e a Bandeira possuem em comum? Aparentemente nada. Para o senso comum são coisas totalmente dissociadas, sem relação alguma.

Mas, apesar da aparente dissonância que esses fenômenos possuem, estamos diante de uma excelente e rara oportunidade para demonstrar como a filosofia pode nos ajudar a compreender coisas corriqueiras. Tentarei, assim, demonstrar, com argumentação filosófica, a razão de a Bandeira, enquanto símbolo nacional, não suscitar, no imaginário do povo brasileiro, sentimentos patrióticos.

Iniciarei a nossa investigação das noções mais simples. A Bandeira do Brasil possui natureza simbólica, isto é, é algo posto no lugar de outra coisa, como uma metáfora. Ela representa um ser que está em outro lugar. A razão nos remete, pelo pensamento abstrato, à coisa simbolizada.

Esse símbolo (a Bandeira) representa a Pátria ou o sentimento patriótico de um povo. Mas a Pátria não é apenas um espaço físico ocupado por um determinado contingente humano e sob a tutela de um conjunto de leis. Esses são apenas os seus elementos objetivos. Do ponto de vista do sujeito, ela é constituída por elementos comuns que suscitam no indivíduo sentimentos de identidade com o COLETIVO. Esse imaginário é produzido pela ação de fatores comuns como a língua, valores, cultura, raça, religião, etc. Até o futebol e as telenovelas podem contribuir para a construção desse ideal. Mas, apesar de tudo, o sujeito pode ou não cultivar esse sentimento. Tudo depende da forma como ele se relaciona com a realidade.

Como a identidade com o coletivo não é coisa natural, é necessário que a educação a impinja no espírito humano. Mas, a sociedade brasileira, científica e capitalista, priorizou valores individualistas. A noção de felicidade ficou circunscrita ao ambiente privado. O prazer passou para o âmbito do pessoal. Tudo que é público não suscita interesse. No espaço gregário as coisas ruins acontecem: multas, impostos, violência e o caos da vida urbana. Somos educados para não nos interessar por tudo que seja coletivo. Vivemos para acumular bens que possam afastar a dor e assegurar a nossa satisfação ou dos entes queridos. Por isso não nos interessamos pela prosperidade da sociedade como um todo. Estudamos e trabalhamos para atender somente as nossas necessidades individuais.

Quando alguém tem os seus direitos vilipendiados na vida civil, não nos sentimos afetados. Somente nos mobilizamos quando somos diretamente atacados em nossos interesses. Empreendemos os nossos esforços para resolver problemas pontuais. Blindamos os nossos automóveis e nos “blindamos” em condomínios “fechados”, em shopping centers, etc. Até quando vamos à igreja, o fazemos objetivando a solução de problemas pessoais. O perdão, a cura ou a “vida eterna” são resultado de ações virtuosas e individuais. O “rebanho” não será salvo em conjunto.

A sociedade para qual trabalhamos está circunscrita aos “nossos”. A amizade não é pra qualquer um. Vivemos em altos edifícios, onde habitam centenas ou milhares de pessoas, mas, normalmente, não sabemos o nome do nosso vizinho do lado. Falamos com os nossos concidadãos burocraticamente. As “boas maneiras” expressam apenas a nossa adequação à vida em conjunto. Agimos como se as questões de interesse comum fossem responsabilidade de algum Deus (ou herói).

Essa aversão ao coletivo nos faz conceber a vida política como coisa para mal intencionados, mas não nos esforçamos em fiscalizar aqueles que tratam da coisa pública. Somente vamos à delegacia quando o ladrão nos tira algo pessoal. Os bens coletivos podem ser apropriados e expropriados por qualquer um, sem qualquer mobilização social. “O que pertence a todos não pertence a ninguém”. É como uma abstração. Nós apenas habitamos na Cidade, não nos sentimos responsáveis por ela. Estamos nela, mas não a queremos. Somos como estrangeiros em nosso próprio território.

Ora, como é possível, nesse contexto, o cultivo do Patriotismo se não temos interesse pelas coisas da cidade? Se tudo que é público nos causa infelicidade? Se a PÁTRIA, que é a expressão do coletivo em nós, não possui valor, como podemos nos importar com a sua principal representação simbólica? Nesse contexto, é compreensivo que qualquer homenagem ou culto à Bandeira não passe mera formalidade, posto que não exista símbolo sem coisa significada.

Eis a razão pela qual a bandeira do Brasil não possui valor simbólico para o povo brasileiro, que somente a lembra em raras ocasiões de manifestação burocrática de civismo, ou em pífias e ridículas reportagens que, por alguns minutos, a cada ano, nos lembram que 19 de novembro é o “Dia da Bandeira do Brasil”.

Assim, mesmo sem a pretensão de que este discurso seja verdadeiro, acredito ter demonstrado que a atividade filosófica pode nos ajudar a pensar a relação que estabelecemos com as coisas, mesmo as que desprezamos, como o nosso símbolo maior.

Salve a Filosofia e a Bandeira do Brasil!

Ressentimento (Walber Wolgrand)

Quando uma mulher diz que os homens,
Por se comportarem de certa maneira, “não prestam”,
Se referindo à infidelidade conjugal ou afetiva,
O faz como expressão da flagrante tentativa de esconder
Atrás do fantasma moral as suas frustrações,
Recalques, submissões, limitações diversas, etc.,
Sentindo-se, ao revés, diferente desses seres
Que, por sua natureza, são "condenáveis" e "dignos de piedade".
Denegrimos o outro para nos sentir superiores
Ou para esconder as nossas impossibilidades.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

O meu amor (Walber Wolgrand)

Quando penso em ti,
Estou pensando em mim também.
Porque o belo e o feio, o justo e o injusto,
O bem e o mal, o sagrado e o profano
Não pertencem às coisas mesmas, mas a quem as contempla.
O meu amor não se realiza no outro,
Nem possui validade universal, como as proposições racionais.
Ele começa e acaba no mesmo lugar - no ser amante.
Posso até dizer que amo as pessoas belas,
As ações justas, os pensamentos lógicos,
Mas, ao dizer isso, nada digo sobre o objeto amado,
Porque não amamos pelo ou para o outro,
Mas para nós mesmos.
E ainda que as minhas carências sejam a causa de tudo,
E, eventualmente, gravitem em torno de ti,
Levando-me a pensar que és a causa desse inusitado sentimento,
Quando penso no meu amor não vejo um objeto específico,
Mesmo que a sua realização pressuponha a existência de outro ser.
Por isso não penso em ti como algo necessário,
Mas como o que permite que o amor brote em mim,
Enquanto simples ato de amar

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Platão e o conhecimento (Ou: "Conhecer é rememorar")






A suposta existência (Carlos Drummond de Andrade)

Como é o lugar
quando ninguém passa por ele?
Existem as coisas
sem ser vistas?

O interior do apartamento desabitado,
a pinça esquecida na gaveta,
os eucaliptos à noite no caminho
três vezes deserto,
a formiga sob a terra no domingo,
os mortos, um minuto depois de sepultados,
nós, sozinhos no quarto sem espelho?
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Para compreendermos o que é o conhecimento para Platão, é necessário, antes, analisarmos alguns elementos da sua ONTOLOGIA, isto é, da sua teoria sobre a realidade.

Lembremos que algumas posições, por vezes divergentes, sobre o que é o real, já haviam sido postas pelos filósofos Pré-Socráticos. Para Heráclito, por exemplo, o Ser é a mudança. Tudo está em constante movimento, logo a estaticidade ou a permanência do mundo é ilusória. Parmênides, ao revés, concebeu a transformação da realidade como irreal, pois, ao relacionar o Ser com o pensamento, o imaginou estático, uma vez que aquilo que está em permanente transformação é impensável, pois uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob as mesmas condições (Princípio da Identidade:"o que é, é; o que não é, não é" ou "A é A").

Para solucionar essa disjuntiva férrea Platão compatibilizou as posições desses filósofos, admitindo a existência de dois mundos: o SENSÍVEL, que é captado pelos órgãos da sensibilidade; e o INTELIGÍVEL, alcançável apenas pelo pensamento. Porém, admitiu que somente os seres que habitam o mundo inteligível seriam reais ou verdadeiros, na medida em que o conhecimento da realidade exige a existência de um PONTO FIXO, que não se altere, enquanto condição para o pensamento. Aos seres do mundo inteligível Platão chamou de IDEIAS, que seriam as verdadeiras entidades, sendo, inclusive, independentes do próprio homem. Elas seriam a inspiração para o grande artífice do mundo material, DEMIURGO, criar todos os seres que vivem no plano da sensibilidade, os quais não passariam de meras cópias.

As ideias seriam essências universais das quais decorrem a existência dos seres do mundo sensível, por isso mais verdadeiras que estes.

Para alcançar as essências universais seria preciso não confiar na sensibilidade e trabalhar no plano meramente intelectual, como condição "sine qua non" para apreender as ideias imutáveis do BEM, do BELO e do VERDADEIRO. Essa atividade seria própria do filósofo, enquanto alguém treinado para resistir às tentações do mundo sensível, tornando-se apto ao exercício teórico.

Platão descreveu o trajeto do filósofo em busca do conhecimento no “MITO DA CAVERNA”, alegoria que integra a Carta VII da obra “A REPÚBLICA”. Nesta metáfora o filósofo relata como o homem passa da DÓXA (opinião) ao nível da EPISTEME (ciência). Apesar de considerar todos os seres humanos, enquanto seres racionais, capazes de conhecimento por já trazermos em nossas mentes as idéias do BEM, do BELO e do VERDADEIRO, o filósofo entendeu que poucos se interessam em abandonar o plano dos prazeres sensíveis para alcançar o verdadeiro conhecimento, visto que a busca pelo saber implica no abandono às crenças sedimentadas pelo tempo no espírito humano (conforto do fundo da caverna). Segundo o filósofo, a maioria se compraz em permanecer no confortável mundo das opiniões, com o qual todos estão acostumados. É nesse ambiente de apatia epistemológica que aparecem aqueles que “formam as opiniões”, isto é, os demagogos.

Como a maioria dos homens vive em nível da dóxa (opinião) e não está acostumada a fazer uso da razão para se orientar, sendo movida por interesses e voltada para o que lhes agrada e atende às suas necessidades imediatas, vivendo por conveniência e desprezando o que as coisas são em si, torna-se presa fácil dos demagogos, daqueles que oferecem a ilusão como fundamento da existência. É neste ambiente que a visão sectária da realidade prospera.

Nesse contexto, o homem de conhecimento, que tenta apreender as coisas como são, objetivamente, fica em desvantagem com relação ao demagogo, na medida em que este, ao proceder em conformidade com os desejos das pessoas, consegue maior adesão às suas idéias. Por isso o prisioneiro que retorna a caverna com o objetivo de libertar os seus companheiros das ilusões do mundo sensível é hostilizado, agredido e morto.

Por isso o filósofo é uma exceção no contexto social. Como ele não age por interesse, mas por princípios, voltado para valores universais de beleza e justiça, poucos lhe dão ouvidos. Essa característica moral decorreria, segundo Platão, do fato de a alma humana, antes de incorporar, ter coabitado com as IDEIAS (formas ou essências perfeitas) e, após passar pelo processo traumático de incorporação, haver se esquecido do que contemplara. O filósofo seria aquele sujeito capaz de lembrar o que sua alma conhecera. Esse entendimento (teoria da reminiscência) está descrito no “MITO DE ER”, constante no livro X de “A República”, que podemos interpretar como a capacidade que o homem possui de elaborar pensamentos universais ao exercitar a atividade racional.

O certo é que, para Platão, esse nível de conhecimento (episteme) é prerrogativa de quem se dedica às atividades intelectuais. É preciso abandonar as impressões equívocas e sedutoras causadas pela sensibilidade para se conhecer a verdade. Embora todos os seres humanos queiram o BEM (os que praticam o mal o fazem por ignorância, pois acreditam que ele é o bem), o VERDADEIRO e o BELO, enquanto motivações universais para o agir humano neste mundo, nem todos estão aptos para alcançá-los. É nesse contexto que as tarefas de governar e educar as pessoas seriam próprias do filósofo, o único capaz de zelar pelo interesse comum da sociedade, posto que os demais, como os prisioneiros da caverna, estariam presos a interesses pessoais, egocêntricos e mesquinhos.

Somente quem é capaz de ultrapassar as determinações individuais e subjetivas e alcançar o BELO em si, o VERDADEIRO em si e o BEM em si seria capaz de governar com justiça. Essa é a razão que fez Platão identificar a figura do governante com a do filósofo.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

O pensamento ético de Sartre (Ou: "O homem está condenado à liberdade")




Ritual (Cazuza)

"Ao mesmo Deus que ensina a prazo
Ao mais esperto e ao mais otário
Que o amor na prática é sempre ao contrário
Que o amor na prática é sempre ao contrário"


A partir do século XVII o interesse pelas coisas humanas marcou o pensamento filosófico. Porém essa tradição partiu do pressuposto de que existem traços comuns na composição do homem, capazes de justificar a crença numa essência ou natureza humana. Descartes, por exemplo, teve como ponto de partida para a sua elaboração teórica a SUBJETIVIDADE, daí ter dito a famosa frase: “Penso, logo sou”. A característica principal do ser humano seria o pensamento. O homem é um ser pensante e racional.

Partindo desse pressuposto, o conhecimento residiria no espírito humano. Ele começa pela essência e por aí vai. O homem teria uma essência pensante. Surge, assim, um ambiente em que o pensamento vai ser extremamente valorizado como o principal ingrediente humano.

Sartre também é um humanista, mas ele inverte a lógica que preponderou no pensamento moderno. Inspirado no pensamento de Kierkegaard, Heidegeer e Jaspers parte do entendimento de que a EXISTÊNCIA precede a ESSÊNCIA, pois nada define o homem antes dele existir. A existência humana é o dado primordial, pois ela não se reduz a qualquer determinação prévia, mas de modo contingente (não necessário), pois não há razão que a explique.

Para o filósofo não se pode falar em “natureza humana”, posto que seja no processo de existência que o homem se define, logo a constituição do seu ser depende dele próprio. “O homem será aquilo que fizer dele próprio”.

E nesse contexto que no centro do pensamento de Sartre está a LIBERDADE. Com a frase: “A existência precede a essência”, Sartre quer mostrar o que distingue a existência humana da existência dos outros seres naturais. Se a essência não está dada, ela se define a partir das escolhas que cada um faz. Esta escolha resulta num valor que é UNO, mas é também UNIVERSAL porque expressa que toda a humanidade, além das outras possibilidades, passou a ter mais esse caminho proveniente de uma escolha individual.

Mas a existência em Sartre não é abstrata ou metafísica, mas numa dada situação. Isso implica que o exercício da liberdade será sempre limitado pelo contexto em que o homem se encontra (liberdade situada). Daí a afirmação do filósofo de que “O INFERNO SÃO OS OUTROS”, já que é no exercício da liberdade pelo outro que encontramos os limites da nossa. Estar no mundo é viver nesse regime de intersubjetividade, pois vivemos para nós e para os outros. As liberdades se cruzam, pois há diferentes projetos existenciais e históricos.

O sujeito livre é sempre um sujeito histórico. O filósofo não ignora que a história determina o homem, mas reconhece que ele também a faz. Entre o sujeito e as condições históricas e sociais do ambiente em que ele vive existe uma tensão (relação dialética) que se consubstancia na experiência humana.

Há, portanto, uma dependência entre liberdade e responsabilidade que é central na abordagem sartriana. Todos os atos humanos, no sentido rigoroso da palavra, são atos livres, isso significa que quem os pratica é totalmente responsável por eles. A condição de humanidade, no sentido pleno, envolve liberdade de escolher e assumir a responsabilidade por tal escolha.

O homem, ao se reconhecer como único responsável pelos seus atos, se ANGUSTIA. Este sentimento gera um tormento que faz com que muitas pessoas se deixam levar pelos acontecimentos. Mas deixar-se levar pelas circunstâncias também é, segundo Sartre, uma escolha, assim como se submeter à autoridade de alguém. Não há argumentos capazes de eximir alguém das escolhas que faz. A angústia existe porque a responsabilidade dos atos é sempre INDIVIDUAL e SOLITÁRIA. Mesmo quando conversamos com alguém sobre o melhor caminho a seguir, numa situação difícil, em última instância, a decisão tomada será sempre de nossa inteira responsabilidade.

Outro aspecto que torna as decisões mais difíceis é que a escolha individual deve, segundo Sartre, considerar a repercussão do ato para toda a humanidade. A responsabilidade exige que o que eu escolho para mim seja considerado uma escolha legítima para qualquer outra pessoa. Se decido mentir e enganar alguém, devo admitir que qualquer um tem o direito de mentir para mim e me enganar. Quando faço uma escolha para mim estou fazendo também para toda a humanidade. A liberdade, portanto, não é cada um fazer o que bem entende sem pensar nos outros. Divergindo dos marxistas, Sartre considerava que uma dialética autêntica não pode subordinar a consciência subjetiva às determinações objetivas da história. Neste caso, estaríamos trabalhando com relações de causalidade próprias da filosofia analítica.

Enfatizando que a história é feita por pessoas de carne e osso e não por sujeitos abstratos, Sartre considerava que mesmo diante das circunstâncias históricas mais adversas as pessoas fazem escolhas. O problema é que o homem aspira por uma essência, uma IDENTIDADE, enquanto desejo para além de toda existência. É nesse contexto de incompletude que o homem se constitui. Assim, existir é fazer-se neste mundo (que é humano), posto que ele “ESTÁ CONDENADO À LIBERADE”.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

"Oswald de Souza" na PM do Pará (Ou: "É sempre verdadeiro o que não pode ser refutado")*

* Texto elaborado em outubro de 2008.
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Na segunda feira, 12 de outubro de 2008, os jornais locais anunciaram que, segundo cálculos da Polícia Militar, participaram da romaria do Círio de Nossa Senhora de Nazaré mais de 2 (dois) milhões de pessoas. Achei maravilhoso, mas não pude deixar de perguntar “aos meus botões” como a PM conseguiu aferir esse fabuloso número de romeiros. Qual método foi utilizado para realizar esse cálculo? Quem realizou essa proeza matemática? Teria sido o Comandante Geral da PM, o Chefe do Estado Maior, o Comandante da Operação ou um soldado qualquer que, não tendo o que fazer, pôs-se, de prancheta e tudo, a contar um a um os participantes do evento?

Como contar é coisa pra subordinado – comandante tem mais o que fazer – penso que essa nobre tarefa, como tudo que ocorre na PM, foi atribuída a um policial de hierarquia menor, que, tendo cursado com louvor o Ensino Médio, estaria habilitado a tal propósito, afinal, na caserna, prepondera o “incontestável” princípio da competência administrativa: “NÃO PERGUNTE DO QUE SOU CAPAZ, DÊ-ME A MISSÃO”.

Assim, alguém teve de contar o número de romeiros. Mas – se, de fato, contou – não deve ter sido tarefa fácil, pois tinha gente “escondida” nos mais insólitos lugares no trajeto da Santa. Contabilizar todo esse pessoal deve ser mais complicado que “procurar um gato preto num quarto escuro, que não está lá". Mas, por outro lado, produzir um conhecimento com método desconhecido e resultado insondável é mais fácil que comer mamão com açúcar, visto que o resultado desse trabalho jamais correrá o risco de ser contestado, por absoluta impossibilidade de refutação.

Esse episódio matemático me fez lembrar de uma história que ouvi na caserna. Não sei se é verdadeira ou produto de alguma mente “maquiavélica”, que aos montes proliferam na PM. Certa vez o Comandante do Policiamento da Capital - CPC perguntou a um oficial - que comandava uma guarnição que fazia a segurança de um grupo de manifestantes - quantas pessoas faziam parte do evento. Sem pestanejar, o oficial respondeu: “algo em torno de 50 (Cinqüenta) a 3000(três mil) manifestantes”. Depois desse dia, nunca mais duvidei da capacidade dos meus colegas de farda em realizar um cálculo matemático, sem deixar nada a desejar para matemáticos como Oswald de Souza e cia.

P.S – Na “festa da vitória” do prefeito Duciomar Costa, dia 26.10.08, na Av. João Paulo II, mais um PM matemático estimou - com precisão invejável - a concentração de cerca de 100.000 (cem mil) pessoas naquele local. ("O Liberal" de 27.10.80, caderno Poder, pág. 1).
...
Moral da História: A PM pode não policiar bem a cidade, mas, até hoje, ninguém reclamou de qualquer cálculo matemático feito pela corporação.

sábado, 10 de setembro de 2011

Eu te amo (Walber Wolgrand)

Eu te amo...
Pelo menos penso que te amo.
Talvez apenas pense e, por isso, às vezes, até creia.
Mas não apenas penso, vou além, sinto que te amo, isto é, penso que sinto.
E se apenas sentisse... Como saberia que te amo?
Por outro lado, se não existisses certamente eu não sentiria,
Nem pensaria essas coisas.
Tudo ocorre porque de alguma forma te percebo.
Mas ainda assim pode ser que eu não te ame.
A existência é condição, não o amor.
No entanto, eu percebo as outras pessoas, as outras coisas, os outros seres
E não os quero com tanta força.
Nisto alguma diferença reconheço,
E ela – a intuição de certa diferença – parece me autorizar
A dizer que te amo.
É estranho pensar o amor dessa forma,
A partir da diferença de algo que apenas permite a existência de outro ser.
Mas agora sei que para pensar o amor (que nutro por ti)
Preciso do mundo, mesmo que o negando.
Porque o objeto amado, como todo objeto,
Tem um conteúdo, uma forma, uma maneira de ser,
Que aos olhos do amante não se assemelha a nenhum outro.
A sensibilidade disso parece, de alguma maneira,
Garantir aquilo de que suspeitava:
De que te amo.
Pelo menos penso...

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

O PT é 15 (Ou "Um caso de lógica "informal"")

* Texto elaborado em 2008, durante a campanha eleitoral para o cago de Prefeito de Belém (Cidade onde tudo é possível).

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Com a assertiva “o Ser é, o não-Ser não é” o filósofo pré-socrático Parmênides de Eléia inaugurou o que mais tarde a tradição ocidental chamou de LÓGICA FORMAL. Coube, porém, a Aristóteles a tarefa de sistematizar esse instrumento necessário para a elaboração de raciocínios válidos e corretos. Mas, cumpre-me dizer aos que tem pouca intimidade com a filosofia que a lógica não foi criada pelos filósofos. Ela sempre existiu na própria estrutura do pensamento. Nós, mesmo inconscientemente e em nível de senso comum, utilizamos, ao pensar, os princípios racionais da IDENTIDADE, NÃO CONTRADIÇÃO, CAUSALIDADE e TERCEIRO EXCLUÍDO. Assim, o ser humano tem tentado afastar o erro e construir pensamentos confiáveis por meio dos conhecimentos racionais: senso comum, arte, filosofia e ciência.

Porém, quando navegamos na seara da política tupiniquim, em especial na paroara, somos forçados a reconhecer que o raciocínio lógico é solene e descaradamente ignorado pelos nossos políticos profissionais, motivo pelo qual essa atividade gera grande descrédito em nossos concidadãos. Afinal, como confiar em algo tão contraditório como a maneira de fazer política em nosso Estado? Qualquer espírito atento fica estupefato com os argumentos elaborados pelos nossos representantes políticos, que, sem pretensão universal, se alinham apenas aos próprios umbigos.

Para exemplificar – e para tristeza dos petistas ortodoxos – foi propalado em cadeia estadual de televisão, pelo candidato do Partido dos Trabalhadores à prefeitura de Belém, Mario Cardoso, que agora “o PT é 15”. Logicamente é um absurdo, todos sabem que o PT é 13 (ou era), mas na prática significa que o partido apóia, no segundo turno das eleições municipais da nossa capital, o candidato do PMDB José Priante (Coisa inimaginável há algum tempo atrás).

E para complicar mais as nossas limitadas cabeças, a governadora Ana Júlia, que se diz petista, não apoiará o candidato Priante; logo, para ela, o PT não é 15; ou, quem sabe, ela não é 13; ou ainda, talvez, o 13 é (e não é) 15; sei lá...

Isso não importa. Os pensamentos rigorosos, lógicos e com validade universal são coisas de filósofos e cientistas. Na política não há necessidade de tanto rigor assim. O branco pode ser preto que não faz mal algum. É só falar 10 ou 20 vezes alguma coisa que ela se torna verdadeira. Esse pessoal já percebeu que não é o pensamento racional que mobiliza as pessoas, logo pouco importa se os argumentos são contraditórios ou não (quem observará isso?). A única lógica que importa é a do PODER, do fisiologismo político e dos interesses individuais.

Assim, seguindo caminho contrário ao dos políticos paraenses, analisemos os seguintes silogismos para verificarmos se assiste alguma validade aos argumentos até aqui apresentados:

Se o PT é 15
E o 15 não é 13,
Logo o PT não é 13.
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Se o PT é 15
E a governadora não é 15,
Logo a governadora não é petista.
.........

Se o PT é 15
E o 15 tem como “manda chuva” o Jader Barbalho,
Logo o Jader Barbalho é o “manda chuva” do PT.
.........

Se o PT é 13 e 15 ao mesmo tempo
E uma coisa não pode ser duas ao mesmo tempo,
Logo o PT não é coisa alguma.
.........

Se o 15 tem o poder
E o PT que era 13 e virou 15,
Logo o PT é “fisiológico”.
.........

Se o PT dizia que o 15 não era honesto
E o PT virou 15,
Logo o PT virou desonesto.
.........

Se o PMDB é 15
E Mário e Jordy “viraram” 15,
Logo todos são “farinha do mesmo saco”.

Como vimos, a política é o campo da instabilidade lógica, onde tudo pode “ser ou não ser dependendo da questão”. Mas não quero dizer que não possamos mudar de opinião – é claro que podemos e devemos -, mas, como filósofo, não posso concordar com mudanças que contrariem a boa lógica e com a qual tentem, por um aborto da coerência e moralidade públicas, nos convencer de que "A não é A", tratando-nos simplesmente como se fossemos o resultado do cruzamento da égua com o jumento.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Filosofilmes no IFPA (MATRIX: A verdade como instrumento de libertação)





IFPA - Campus Belém


Coordenação de Ciências Humanas


Atividade Complementar: Exibição de filme e debate


Filme: MATRIX, 1999, EUA


DIA: 13 de setembro de 2011, terça-feira.


LOCAL: 3º piso da Bilbioteca Central do IFPA.


HORA: 09:00 h


"CONHECEREIS A VERDADE E A VERDADE VOS LIBERTARÁ" - JO 8:32


A questão inicial que o filme suscita: O que é a MATRIX? A Matrix é uma espécie de útero universal que usa a inteligência humana criando uma realidade virtual. Em outras palavras, é um sistema (programa de computador) que ESCRAVIZA o ser humano, fazendo-o crer que a realidade é aquilo que se apresenta aos órgãos dos sentidos.

O tema central do filme é a LIBERDADE, discutida a partir do binômio: REALIDADE - ILUSÃO. Fala de um tipo sutil de escravidão e nos coloca uma das questões centrais da Ética: Somos ou não livres?

A realidade para os primeiros filósofos era a physis, enquanto fundamento do mundo natural; ou o SER, enquanto algo mais abstrato. Porém, com Sócrates os filósofos passaram a se interessar por questões relativas à realidade interior ao homem, que podemos ilustrar por meio de três máximas: “Conhece-te a ti mesmo”, “Só sei que nada sei” e “A vida sem reflexão não vale a pena ser vivida. Segundo a tradição, este filósofo teria se dirigido à Cidade Grega de Delfos e, no oráculo em homenagem ao deus Apolo (luz, razão, conhecimento), perguntado quem era o grego mais sábio. A pitonisa teria dito que ele (Sócrates) era o mais sábio, porém o filósofo, como a personagem NEO do filme, não acreditou ser o “escolhido” e duvidou da revelação que recebera.

Depois disso, Sócrates teria procurado investigar o que dissera o Oráculo questionando vários cidadãos atenienses e constatou que eles apenas acreditavam conhecer (aparências) as coisas, mas não as conheciam de fato, logo percebeu que pelo menos nesse ponto era mais sábio que os seus compatriotas, pois admitia a ignorância ao dizer: “SÓ SEI QUE NADA SEI”. No entanto, muitos atenienses gostavam de viver naquele mundo de ilusões, por isso Sócrates angariou muitos inimigos e foi condenado à morte. Podemos nos lembrar de Cypher, o traidor, que preferiu a “benfazeja” ilusão que a realidade.

É nesse contexto que podemos recuperar a “Alegoria da caverna”, publicada na carta VII da República de Platão. Com esta história o filósofo tenta nos fazer refletir sobre o que é a realidade. Lembremos que o fugitivo da caverna, como Neo, ao retornar, é hostilizado. No filme, Morfeus, durante o treinamento, adverte Neo que por trás de uma “mulher de vermelho” pode estar um “agente letal”, posto que no âmbito da Matrix todos conspiram contra quem duvida da realidade que ela produz.

Quem são os habitantes da caverna? A humanidade ignorante, que no filme é representado pelos prisioneiros das máquinas.

Os “grilhões” que mantém os prisioneiros no interior da caverna são os preconceitos (hábitos retrógrados e nocivos) que dificultam o acesso ao conhecimento. No filme, as correntes são os “pseudoprazeres”, rotina e ilusão de realidade produzidos pela simulação neurointerativa.

As “sombras” projetadas na parede da caverna são as únicas coisas que os prisioneiros vêem, por isso eles as tomam como realidade. No filme, Morpheus adverte Neo da importância de “ACORDAR” do sono dogmático que acomete todos que estão no interior da Matrix para poder “seguir o coelho branco” (como Alice), se assim o desejar.

Neo é um fugitivo como o prisioneiro que sai da caverna (no mito). Como tal, incorpora o papel do filósofo (político), enquanto aquele que desconfia que é ilusão aquilo que toma como realidade. No filme, como no mito de Platão, quem adquire o conhecimento precisa passar por um período de adaptação. A missão de Neo é conhecer a realidade e voltar para a “caverna”, com o objetivo de salvar os seus companheiros, acordando-os do “sono dogmático” que se encontravam.

Por fim, o filme Matrix nos coloca a seguinte e definitiva questão: Devemos escolher a pílula azul e continuar na ilusão; ou a vermelha e tentar conhecer a realidade, mesmo que ela não seja tão agradável? De qualquer forma, o caminho da filosofia é e sempre será uma alternativa, porque a LIBEDADE, para a grande maioria dos seres humanos, NÃO É UM VALOR.

Brasil x Argentina: a política do açaí e circo (ou "O coliseu paroara")

Os diversos reinos e impérios criados pelo homem são admiráveis por diversos aspectos, mas nenhum, em toda história da humanidade, foi ao mesmo tempo poderoso, duradouro, extenso e influente quanto o Império Romano. Com superioridade militar, riqueza cultural e boa dose de oportunismo, sua hegemonia foi tão incontestável que parecia que ia durar para sempre.

Se Atenas nos legou a filosofia; Alexandria, a ciência (em especial a medicina); Roma, pelo seu caráter conquistador, desenvolveu sofisticado sistema jurídico (ainda hoje os cursos jurídicos pátrios possuem em seus currículos uma abordagem do direito romano). Era preciso organizar a vida pública para manter o poder, principalmente nas áreas conquistadas. Há de se supor que não foi tarefa fácil, naquela época, controlar diversos povos se rebelando simultaneamente, contando apenas com a força bélica. Daí ser inegável reconhecer a grande habilidade dos romanos com a política, o que lhes permitiu manter as rédeas do Império por tanto tempo. Os benefícios que propiciaram parecem superar claramente as desvantagens. As elites governantes locais eram manipuladas para que mantivessem o povo das áreas conquistadas sob controle.

Um componente expressivo da estratégia política romana era a realização de grandes shows em anfiteatros abertos, onde pessoas e animais, literalmente, se digladiavam. A arena mais famosa, localizada em Roma, era chamada de COLISEU, com uma capacidade de, aproximadamente, 50 mil pessoas. Tornou-se, assim, um emblemático símbolo romano.

Na Roma Republicana, até 63 a.C, figuras públicas rivais, em busca de popularidade, patrocinavam as mais estrambóticas e sangrentas apresentações, tudo para obter votos. Com o advento do Império os eventos se expandiram e passaram a durar o dia inteiro. Animais desconhecidos do grande público eram importados das áreas conquistadas para conferir maior glamour ao acontecimento. O Coliseu era o local onde o imperador demonstrava toda a sua força ao povo, mas também era o lugar onde a população celebrava a glória do Império e o orgulho de integrá-lo.

No Coliseu as arquibancadas eram preenchidas hierarquicamente. Os ricos e poderosos ocupavam os bancos da frente; e a massa, as fileiras mais altas. O funcionamento do espetáculo simbolizava a maneira como a sociedade se organizava. Por meio dos grandes combates se exercia o controle social, evidenciando-se, nas entrelinhas, que somente à elite cabia um papel ativo dento dessa sociedade. Era a estratégia conhecida como “PÃO e CIRCO”, ou seja, enquanto o povo estivesse ocupado assistindo aos combates, fecharia os olhos para a corrupção e não se preocuparia com os problemas sociais e econômicos que os afligiam.

Se não tivesse utilizado neste artigo conceitos como IMPÉRIO, GLADIADOR, COLISEU, COMBATES SANGRENTOS, etc. qualquer leitor juraria que estava retratando rigorosamente o atual ambiente político no Estado do Pará. O Governo do Estado, com a inestimável ajuda do Sr Ricardo Teixeira, Presidente da Confederação Brasileira de Futebol há décadas, tenta demonstrar preocupação com o bem estar dos seus governados patrocinando uma partida de futebol entre as seleções “improvisadas” do BRASIL e ARGENTINA que ocorrerá nos últimos dias do mês de setembro deste ano. Um verdadeiro evento “tapa boca” para o povo paraense esquecer que a capital do Estado foi rejeitada para sediar jogos da Copa do Mundo de 2014 no Brasil. Se na Roma antiga existisse o registro de marcas e patentes, não tenho dúvida que os políticos “papa chibés” seriam processados por plágio ao tentar iludir o povo como os latinos de outrora.

Para realizar essa empresa, a Administração paraense se aliou a Teixeira sem o menor pudor, mesmo sabendo que o “cartola” está envolto em denúncias de fraudes e outras impropriedades no exercício do cargo. Tudo para dar aos paraenses o que mais lhes agrada: a sensação de felicidade, mesmo que não haja qualquer correlato empírico. Como o futebol tem um poder sedutivo sem igual para o tolo povo brasileiro, é perfeitamente compreensivo que essa carência seja satisfeita com toda pompa e estultícia que a ocasião exige, afinal não se alimenta um animal carnívoro com salada de alface.

Por isso, nos tempos atuais, no lugar do Coliseu temos o Estádio Edgar Proença (vulgo MANGUEIRÃO). Substituindo as feras importadas e os gladiadores, se apresentarão os heróis “pernas de pau” Rolnaldinho Gaúcho, Paulo Henrique “Ganso” (que, aliás, não jogará porque está estropiado), Neymar e Cia. Como na antiguidade, o Governo investe no espetáculo para que o povo esqueça que a SANTA CASA DE MISERICÓRDIA pede misericórdia; a SEGURANÇA PÚBLICA, proteção; os HOSPITAIS REGIONAIS, socorro; a EDUCAÇÃO, educação; o INTERIOR DO ESTADO, lembrança; a ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA, virtudes morais; as OBRAS PÚBLICAS, cronograma; os ATOS ADMINSTRATIVOS, transparência ...

Compondo o pirotécnico cenário, os membros do MP e Tribunais de Contas - como os cônsules da Roma imperial -, atuam como meras figuras decorativas. Suas ações são aquelas “sem as quais as coisas ficam tais e quais". Já os parlamentares da terra do asfalto e do açaí são a "imagem e semelhança" do Senado corrupto da Roma republicana. Por fim, o povo - como um viciado incontido - encena o imutável papel de EXPECTADOR do grande evento ufanista, demonstrando a sua INFINITA CAPACIDADE DE SER RIDÍCULO. Pode não ter o que comer, mas é capaz de adquirir um ingresso para o glamoroso evento por, no mínimo, 90 reais (algo em torno de 20% DO SALÁRIO MÍNIMO) e ainda, como os viciados em drogas alucinógenas, se julgar beneficiado por ter participado de uma fantasia perniciosa chamada FUTEBOL.

Nesse contexto, a Roma antiga e o Pará hodierno fortalecem a crença – muito difundida na Modernidade – de que existe uma NATUREZA HUMANA suscetível às artimanhas de controle e dominação criadas pelo próprio homem. Sem esse traço psicológico comum à espécie humana nenhum Império Romano ou república Paroara alcançaria tamanho sucesso na arte de enganar os seus governados. Em outras palavras, os espertalhões de hoje, e de ontem, são beneficiados pela inefável capacidade humana de pensar a realidade como uma grande e “espetaculosa” ilusão.

O caso Nardoni: o testemunho da prova científica (Ou "O mito do conhecimento objetivo")



“Nada é mais importante que ver as fontes
da invenção que são, em minha opinião, muito
mais importantes que as próprias invenções”
(Leibniz)

Começo este artigo dizendo que, em nossa sociedade, a ciência virou um mito. Os reflexos dessa crença se manifestam, principalmente, quando se acredita que os produtos do conhecimento científico são inquestionáveis, gerando um comportamento dogmático ante o próprio ato de conhecer. O recente julgamento do casal Nardoni, acusados de matar a pequena Isabela, esganando-a e jogando-a do 6º andar de um edifício na Cidade de São Paulo, exemplifica categoricamente essa postura do homem moderno. Desde o promotor do caso, que tinha pleno domínio dos autos, ao mais desinformado dos cidadãos brasileiros, todos estavam convictos de que a sentença condenatória foi justa, afinal as provas periciais não deixaram dúvidas sobre a autoria do crime. Ficou explícito que ante a “manifestação da ciência” não há discussão possível.

Mas, uma coisa é a decisão condenatória, outra é a verdade dos fatos. A verdade não tem relação necessária com os autos, nem com a sentença. À revelia dessa questão de natureza epistemológica, os jurados cumpriram o papel que lhes foi delegado: decidiram. E o fizeram segundo critérios predominantes na sociedade. Acreditaram na veracidade das provas científicas apresentadas. Todos consideraram que o conjunto apuratório foi convincente, mesmo sem a confissão dos réus e a existência de testemunhas oculares. A justiça teria sido feita.

No entanto, sejam os réus culpados ou não, não me proponho a contestar os resultados obtidos pela investigação e referendados pelo juri, mas, antes, analisar o caminho percorrido para a elaboração da teoria que, aos olhos da população tupiniquim, pareceu ser a correta. Mais que a análise dos resultados obtidos, compreendemos melhor um discurso quando trilhamos o caminho de sua elaboração.

Partamos, pois, dos fatos, ou melhor, do fato primordial: a precoce morte da vítima. Os réus, em juízo, negaram qualquer participação para a produção desse resultado. Sugeriram, naturalmente, a hipótese da terceira pessoa, que, não tendo sido identificada, se desvaneceu.

Ora, nessas ocasiões, o que faz o investigador policial? Constrói hipóteses, segundo esquemas de funcionamento da realidade, que entende serem possíveis de ocorrer. Como pano de fundo da sua construção intelectual está a crença de que o mundo é racional e cognoscível, isto é, opera segundo uma ordem e é capaz de ser apreendido pelo pensamento. Assim, é comum, em situações como essas, dizer: “acredito que o crime teve motivações políticas”, “foi queima de arquivo”, “crime passional”, “foi motivado por uso de substâncias tóxicas”, etc. Enfim, o nosso “cientista”, diante dos elementos preliminares, sugere como o acontecimento - que por ele não foi presenciado - ocorreu, como se a experiência obtida com os casos anteriores lhe conferisse certa autoridade para supor o que teria ocorrido no caso presente. Talvez a lendária figura de Sherlock Holmes nos faça crer, além do razoável, no poder dedutivo do intelecto humano.

Antes de qualquer coisa, é preciso considerar que o investigador tem uma reputação a ser preservada e ela repercute diretamente em seu desempenho funcional. Promoções, nomeações, condecorações, etc., são concedidas, normalmente, em função da maneira como se comporta no exercício do cargo. No mesmo rastro, governantes – mas, por questões políticas - também possuem interesse na solução dos crimes que ocorrem em sua circunscrição, principalmente quando o delito, por uma razão qualquer, ganha publicidade acima da normal. Não encontrar o criminoso é atestado expresso de incompetência e ineficiência do poder público, podendo gerar reflexos emocionais e comportamentais na comunidade onde o fato ocorreu. Em qualquer hipótese é sempre conveniente "encontrar" o transgressor, tenha ele “cometido ou não o delito”. Quando os fatos que repercutem no meio social são desvendados, todos ficam felizes, menos, é claro, as vítimas e os possíveis autores do crime. Eis o porquê de a movimentação do aparato estatal nunca ser isenta ou imparcial.

Existindo, pois, motivação para solucionar o caso, era preciso buscar os provas que confirmariam, pelo menos, uma hipótese de como o crime ocorreu. Um fato só tem significação na medida em que acrescenta ou diminui a plausibilidade de uma teoria. No crime da pequena Isabela, os investigadores não encontraram uma terceira pessoa, logo não seria produtivo seguir esse azimute. Não basta explicar o crime, é preciso, do ponto de vista do imaginário coletivo, identificar e prender o criminoso para saciar o sentimento de justiça. A precariedade das informações iniciais não constitui o problema. O DESCONHECIDO é o objetivo maior de todo pesquisador. O inquérito, como toda investigação, busca o invisível e as teorias são enunciados sobre esse invisível. Este é o problema crucial da persecução da “verdade”. É preciso recorrer à imaginação para construir a realidade.

Todo trabalho intelectual não parte dos fatos, mas de um modelo de funcionamento dos fenômenos. No caso Nardoni, tanto os policiais como os peritos partiram de um esquema prévio para, em seguida, buscarem os dados necessários às suas confirmações, como um quebra-cabeça cuja figura já se conhece, mas que carece das peças para a sua construção. Esse modelo, criado pelo próprio homem, foi utilizado na elaboração da teoria que, em termos jurídicos, chamamos de processo. É nesse sentido que Immanuel Kant, filósofo alemão do séc. XVIII, afirmou que jamais conhecemos a coisa em si (o noumenon), apenas o fenômeno, isto é, aquilo que se apresenta a capacidade cognitiva do sujeito. Não somos capazes de conhecer a essência das coisas, apenas as suas aparências. Diz o filósofo: “A razão só pode compreender aquilo que ela mesma produz de acordo com um plano que ela mesma elaborou. Ela se aproxima da natureza não como um aluno que ouve tudo o que o professor se decide a dizer, mas como um juiz que obriga a testemunha a responder questões que ele mesmo formulou”.

Partindo dessa premissa, podemos dizer que tanto os investigadores policiais, como os peritos criminais, inexoravelmente, lançaram mão da IMAGINAÇÃO no curso do trabalho de elucidação do crime. Eles utilizaram armadilhas intelectuais, segundo o entendimento que tinham a respeito do movimento de suas presas. O que torna alguém um bom caçador não são os instrumentos utilizados durante o ato de caçar, como espingardas, revólveres, facas, arapucas, etc. – eles são fáceis de adquirir –, mas o conhecimento que o sujeito possui de como a caça se comporta. As teorias são como malhas que os caçadores lançam para pegar o animal que lhes interessa. Por isso um bom caçador conhece os hábitos de sua caça, o que lhe permite apostar na maneira como ela agirá, permitindo-lhe traçar uma estratégia para capturá-la.

Com fim exclusivamente pedagógico utilizarei uma alegoria para elucidar o raciocínio aqui exposto. Imaginemos, inicialmente, um crime praticado com arma de fogo. Tem-se a vítima, o acusado e a arma que teria sido utilizada para a sua efetivação. O investigador policial reúne esses elementos em um contexto significativo. Depois encaminha a arma, a vítima e o acusado para perícia, elaborando os quesitos que, segundo o seu esquema teórico, são capazes de esclarecer o delito. A partir desses elementos o perito vai aferir se o projétil encontrado no corpo da vítima é compatível com a arma apreendida, se existem fragmentos de pólvora nas mãos do acusado, a possível distância do disparo, etc. Neste caso, o desvelamento do ocorrido foi facilitado pelas circunstâncias encontradas e facilmente organizadas num corpo teórico explicativo, cabendo ao perito apenas confirmá-las para a conclusão do processo apuratório. Se houver COMPATIBILIDADE dos elementos coletados o perito poderá responder, com "valor de verdade", aos questionamentos formulados, confirmando a explicação elaborada pelas autoridades policiais. Consideremos agora outra hipótese: o mesmo crime foi praticado, porém, sabem-se apenas quem foi a vítima, mas o autor e a arma não foram localizados. Durante a investigação, dez pessoas foram detidas para averiguação. Todas dispararam um revólver no mesmo horário do crime, porém de calibre diferente ao utilizado pelo assassino. Além disso, todos os suspeitos apresentaram álibe convincente e não possuem, a priori, motivações para praticar o ato delituoso. Neste caso, sem um contexto favorável para a elaboração de uma teoria de como os fatos se deram a investigação se depara com um impasse, cuja solução exigirá extrema habilidade dos investigadores. Desconsiderando a má fé dos agentes, a "elucidação" do crime, neste caso, dificilmente será conclusiva, como no primeiro caso. Isso porque as "mensagens" encontradas na cena do crime não disporão de um modelo para serem devidamente organizadas. Em outras palavras, o quebra-cabeça dificilmente será concluído.

O senso comum concebe as teorias científicas como produtos acabados, certos e racionais, desprezando o processa mágico de suas produções. É na elaboração das explicações dos acontecimentos que podemos compreender quão frágil são as teorias que são tomadas como verdadeiras, pois se ignora o expressivo papel da imaginação nesses processos. Acredita-se na ciência como o "conhecimento objetivo" por excelência.

No caso Nardoni a perícia foi determinante para a condenação do casal. As manchas de sangue no apartamento, recuperadas com produtos químicos; a identificação de marcas na camiseta do réu; a cronologia dos fatos; as marcas no corpo da vítima sugerindo esganadura e outras lesões (causa principal da morte), além de outros traumas decorrentes da queda do sexto andar. Tudo foi encaixado num corpo teórico capaz de produzir o sentido necessário à investigação criminal e o conseqüente amparo para a promotoria de justiça requerer a condenação do casal. Ocorre, porém, que tanto a investigação como a perícia são procedimentos que não asseguram, por si sós, a verdade do acontecimento. São interpretações, e como toda interpretação tem mais do sujeito que a realiza que do fenômeno analisado. As testemunhas do caso foram criadas pelos instrumentos tecnológicos como se eles pudessem viajar no tempo e registrar o crime em sua nudez objetiva. Assim, a tese apresentada pela acusação, durante o julgamento, venceu. Os réus foram condenados. Como eles não foram confessos e não foram arroladas testemunhas (humanas) oculares do fato, a perícia se encarregou de decifrar o enigma e nos contar aquilo que é apanágio dos deuses: a verdade. E quando se acredita que se possui a verdade, não há argumento possível.

Como a ciência se tornou inquestionável em nossa sociedade, vou recorrer ao conhecimento “incerto e duvidoso” por excelência: a ARTE, para concluir este artigo. lembrei-me do filme “A vida de David gale”. Gale é professor e ativista político contra a pena de morte nos EUA. Acusado de estupro e assassinato, é julgado e condenado à pena capital. No final surpreendente, descobre-se que ele é inocente, contrariando as provas constantes nos autos. Esse filme, como toda obra de arte, nos ajuda a pensar sobre a precariedade das TEORIAS humanas, quer científicas, religiosas ou filosóficas, principalmente quando estão no bojo de um processo judicial.

“Nós não conhecemos. Nós só podemos dar palpites” (Karl Popper).

Filosofilmes no IFPA (A onda: o poder do grupo sobre o indivíduo)

Filosofilmes no IFPA (A onda: o poder do grupo sobre o indivíduo)

IFPA - Campus Belém

Coordenação de Ciências Humanas

Atividade Complementar: Exibição de filme e debate

Filme: "A ONDA"

DIA: 25 de agosto de 2011, quinta-feira.

LOCAL: 3º piso da Bilbioteca Central do IFPA.

HORA: 09:00 h


O filme “A onda” tem início com o professor de história Burt Ross explicando aos seus alunos a atmosfera da Alemanha, em 1930, a ascensão e o genocídio nazista. Os questionamentos dos alunos levam o professor a realizar uma arriscada experiência pedagógica que consiste em reproduzir na sala de aula alguns clichês do nazismo: usariam o slogan “Poder, Disciplina e Superioridade”, um símbolo gráfico para representar “A onda”, etc.

O professor Ross se declara o líder do movimento da “onda”, exorta a disciplina e faz valer o poder superior do grupo sobre os indivíduos. Os estudantes o obedecem cegamente. A tímida recusa de um aluno o obriga a conviver com ameaças e exclusão do grupo. A escola inteira é envolvida no fanatismo d’A onda, até que um casal de alunos mais consciente alerta ao professor ter perdido o controle da experiência pedagógica que passou ao domínio da realidade cotidiana da comunidade escolar.

O desfecho do filme é dado pelo professor ao desmascarar a ideologia totalitária que sustenta o movimento d’A onda, denuncia aos estudantes o sumiço dos sujeitos críticos diante de poder carismático de um líder e do fanatismo por uma causa.

Embora o filme seja uma metáfora de como surgiu o nazi-fascismo e o poder de seus rituais, pode conscientizar os estudantes sobre o poder doutrinário dos movimentos ideológicos políticos ou religiosos. O uso de slogans, palavras de ordem e a adoração a um suposto “grande líder” se repetem na história da humanidade: aconteceu na Alemanha nazista, na Itália fascista, e também no chamado ‘socialismo real’ da União Soviética, principalmente no período stalinista, na China com a “revolução cultural” promovida por Mao Tsé Tung, na Argentina com Perón, etc. Ainda, recentemente, líderes neo-populistas da América Latina, valendo-se de um discurso tosco anti-americano, conseguem enganar uma parte da esquerda resistente a aprender com a história.

Continua sendo atual o discurso do professor Ross, proferido no final de “A onda”:

“Vocês trocaram sua liberdade pelo luxo de se sentirem superiores. Todos vocês teriam sido bons nazi-fascistas. Certamente iriam vestir uma farda, virar a cabeça e permitir que seus amigos e vizinhos fossem perseguidos e destruídos. O fascismo não é uma coisa que outras pessoas fizeram. Ele está aqui mesmo em todos nós. Vocês perguntam: como que o povo alemão pode ficar impassível enquanto milhares de inocentes seres humanos eram assassinados? Como alegar que não estavam envolvidos. O que faz um povo renegar sua própria história? Pois é assim que a história se repete. Vocês todos vão querer negar o que se passou em “A onda’. Nossa experiência foi um sucesso. Terão ao menos aprendido que somos responsáveis pelos nossos atos. Vocês devem se interrogar: o que fazer em vez de seguir cegamente um líder? E que pelo resto de suas vidas nunca permitirão que a vontade de um grupo usurpe seus direitos individuais. Como é difícil ter que suportar que tudo isso não passou de uma grande vontade e de um sonho”.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Filosofilmes no IFPA (Ulisses: O símbolo da racionalidade da Grécia Arcaica)

IFPA - Campus Belém


Coordenação de Ciências Humanas


Atividade Complementar: Exibição de filme e debate


Filme: ULISSES, 1954, EUA


DIA: 18 de agosto de 2011, quinta-feira.


LOCAL: 3º piso da Bilbioteca Central do IFPA.


HORA: 09:00 h



O filme ULISSES é uma adaptação para o cinema da obra de Homero “A ODISSÉIA”. Depois da Guerra de Tróia o herói grego Ulisses (Odisseu) enfrenta diversos adversários no seu caminho para retornar à cidade de Ítaca, onde era rei e deixara a esposa, Penélope, e o filho Telêmaco.


Como todo mito, “A Odisséia” narra a trajetória do homem em busca do sentido da vida ou de si mesmo. Os grandes feitos do herói (experiências excepcionais) podem ser interpretados como lutas internas que travamos na busca da superação das limitações humanas ante as adversidades da vida.


Agimos em sociedade em relação a um sistema (certa programação). Será que o sistema vai nos devorar e tirar de nós a natureza humana ou vamos utilizar o sistema para realizar objetivos humanos?


Como devemos nos relacionar com o sistema sem servir a ele? Mesmo quando não podemos mudá-lo, podemos viver nele como ser humano. Como isso é possível? Não cedendo. Resistindo às exigências impessoais do sistema, ou seja, dando atenção aos pedidos do nosso coração.


Interessamo-nos por essas histórias fantásticas porque há sempre um herói dentro de nós. Mas esse herói não tem o condão de nos impelir a “salvar o mundo”, no sentido de mudar as suas regras, no entanto pode nos permitir descobrir, em cada caso pessoal, ONDE ESTÁ A VIDA E VIVÊ-LA.


Existe um centro que nos apóia (aqui - agora) e que apenas podemos saber. Os mitos servem para nos elevar a certo tipo de consciência (que não é material), num mundo em que tudo tem uma consciência.


Ulisses, tanto na “Odisséia” como na “Ilíada’, é o símbolo do discernimento, da capacidade do homem de superar as adversidades, sejam físicas ou psicológicas. A ele se atribuiu o ardil do “cavalo de madeira” que permitiu aos gregos penetrar em Tróia e obter a vitória. Protegido por Atenas (deusa da estratégia) e perseguido por Poseidon (deus dos mares) passou 20 anos no Mediterrâneo em regresso à Ítaca.


Durante a viagem, Ulisses enfrentou Polifemo, filho de Poseidon, um ciclope (gigante com apenas um olho) que o herói enfrentou. Após embriagá-lo Ulisses o superou, cegando-o. Esta passagem simboliza o combate, com a astúcia e inteligência, contra o lado animal que todos possuímos.


Em seguida, o herói passa pelo mar das sereias (pássaros com cabeças de mulheres) e usa a estratégia de se deixar amarrar ao mastro central do navio para não sucumbir ao inebriante canto das figuras mitológicas. Mostra que para enfrentar as artimanhas das paixões é preciso se antecipar com planejamento e ardil.


Na ilha da deusa/bruxa Circe, mais uma vez Ulisses precisa estabelecer limites aos desejos e prazeres - que aparecem no caminho de todo e qualquer viajante - para resistir aos “encantos’ da linda bruxa que transformava homens em porcos (animais domésticos).


“A ODISSÉIA", como qualquer relato mítico mostra que a vida é cheia de obstáculos e os desafios são para nos fortalecer, porque, como os heróis, podemos ser os protagonistas da nossa própria existência.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

O malandro - Chico Buaque (Ou "Condenado pela situação")

Com a música "O malandro" Chico Buarque de Holanda, com maestria, nos mostra o que é a atividade (investigação) filosófica. Para compreendermos determinado fenômeno é preciso “navegar” para além dele próprio e pesquisar as causas “invisíveis” que direta e decisivamente o afetam e o determinam. Platão já nos alertara que aquilo que parece ser mais abstrato e distante de nossa percepção sensível, são as coisas sobre as quais, de fato, podemos ter certeza.

Todas as coisas existem num contexto que as formam e conformam. Pensá-las é apreendê-las no ambiente em que estão inseridas, de outra forma o verdadeiro sentido de suas existências se esvaem. Por isso o malandro da canção não é autuado, julgado e condenado pelo simples gole de cachaça que consumiu sem o devido pagamento, mas pela “lógica capitalista” que faz com que todos que dela participam se sintam compelidos a cobrar das outras pessoas determinadas condutas.

(nota do autor do blog)
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O Malandro (Chico buarque)

http://www.youtube.com/watch?v=_5iGWfguyY8

O malandro/Na dureza
Senta à mesa/Do café
Bebe um gole/De cachaça
Acha graça/E dá no pé

O garçom/No prejuízo
Sem sorriso/Sem freguês
De passagem/Pela caixa
Dá uma baixa/No português

O galego/Acha estranho
Que o seu ganho/Tá um horror
Pega o lápis/Soma os canos
Passa os danos/Pro distribuidor

Mas o frete/Vê que ao todo
Há engodo/Nos papéis
E pra cima/Do alambique
Dá um trambique/De cem mil réis

O usineiro/Nessa luta
Grita(ponte que partiu)
Não é idiota/Trunca a nota
Lesa o Banco/Do Brasil

Nosso banco/Tá cotado
No mercado/Exterior
Então taxa/A cachaça
A um preço/Assutador

Mas os ianques/Com seus tanques
Têm bem mais o/Que fazer
E proíbem/Os soldados
Aliados/De beber

A cachaça/Tá parada
Rejeitada/No barril
O alambique/Tem chilique
Contra o Banco/Do Brasil

O usineiro/Faz barulho
Com orgulho/De produtor
Mas a sua/Raiva cega
Descarrega/No carregador

Este chega/Pro galego
Nega arrego/Cobra mais
A cachaça/Tá de graça
Mas o frete/Como é que faz?

O galego/Tá apertado
Pro seu lado/Não tá bom
Então deixa/Congelada
A mesada/Do garçom

O garçom vê/Um malandro
Sai gritando/Pega ladrão
E o malandro/Autuado
É julgado e condenado culpado
Pela situação

sábado, 18 de junho de 2011

Chico Buarque: 67 anos de poesia (Ou "O chico é eterno")



A Arte é um tipo de conhecimento que transita no terreno arenoso das paixões, da sensibilidade, da intuição, do aspecto mais fluídico do Ser. A Filosofia e a Ciência, diferentemente, perquirem os aspectos estáveis da realidade, utilizando um discurso lógico e rigoroso, quase dogmático, movidas pela crença na posse de um conhecimento objetivo (universal e necessário). Mas a Arte conta com uma linguagem que não se submete aos cânones convencionais de forma e conteúdo, por isso o artista, mesmo quando se contradiz, é capaz dizer: ali está o real, sem qualquer necessidade de demonstração.

O poeta e escritor Francisco Buarque de Holanda é, por excelência, a personificação do artista no sentido estrito do termo. É capaz de sintetizar numa frase aquilo que filósofos e cientistas não conseguem em tratados inteiros. Chico é irreverente, ousado, rigorosamente desordeiro. Sabe que a ordem é produto do intelecto humano e a vida – o seu verdadeiro objeto – não tem regras preconcebidas, e que, para capturá-la, é preciso lançar a rede ao desconhecido sem saber o que nela virá.

Chico quando olha para a sociedade sempre a inverte e subverte. Fala do guri e do pivete de forma não institucionalizada. O menor infrator não é somente um delinqüente, mas alguém que vive a vida em suas limitações, fraquezas e ilusões. A meretriz, filha do desprezo, ironicamente precisa conter o asco de dormir com um nobre forasteiro para redimir uma cidade inteira. O que é o justo e o correto? O poeta não diz, apenas nos atormenta com suas insinuações.

Quando fala do sentimento feminino, não o faz buscando definições universais com descrições exatas e idealizadas, mas retrata a mulher individual, imperfeita, que sofre com a submissão; que se desespera e chora baixinho atrás da porta ao ser abandonada. Que espera o marido no portão todo dia, fazendo tudo igual. Fala também de uma mulher forte, que leva o sorriso da gente e é capaz de encontrar outro “mais e melhor”, como quem diz: “não se mirem no exemplo das mulheres de Atenas”.

Chico sabe que não é preciso ser filósofo para ver o que está ao redor dos acontecimentos. Quando se vai contra a correnteza, a roda viva (o sistema) nos leva “para lá”. Que o malandro - na dureza - não é julgado, condenado e culpado pelo gole de cachaça que indevidamente consumiu, mas pela situação, pelo contexto, que, como um turbilhão, faz o que quer com o nosso destino.

Mas o poeta, ao mesmo tempo, ri e brinca com o próprio destino, culpando-o ironicamente das nossas imperfeições e desditas, das nossas condutas transgressoras, sugerindo que não há um anjo malvado ou um chato de um querubim capaz de nos fazer bons ou ruins; nem mesmo existe um Deus gozador que se compraz em nos colocar em situações embaraçosas, porque a vida é responsabilidade nossa, enquanto pudermos sorrir, enquanto pudermos cantar.

Chico, mais uma vez, desbanaliza o cotidiano nos dizendo que não é na Lapa que está o verdadeiro malandro, mas em algum lugar do serviço público, com gravata, mulher, tralha e tudo. E que apesar dele, amanhã há de ser outro dia. E se esse dia chegar, não será obra do acaso, mas daqueles que nada tem a perder para ousarem formar um verdadeiro cordão contra os poderosos. Porque a vida tem sempre saída, a vida tem sempre razão.

As palavras são a matéria prima do poeta. Falando sério ou só por ouvir dizer, ele sabe quão difícil é acordar calado. Que não há coisa mais nobre no mundo que expressar o pensamento. Não há meio termo possível: ou a voz é nossa ou de mais ninguém. Chico sabe que as palavras tem o condão de criar a realidade, como o artista cria as metáforas. Cala-se, dizendo. Diz em silêncio, “porque a dor não passa”. Porque a condição humana é simples e cruel.

Quando ele fala de amor, parece querer nos confundir. Desdenha do grande amor mudando de calçada; mas, de repente, sente o peito arder de desejo ao ver Cecília passar. Chico não fala de um amor atemporal – pretensão dos filósofos – mas de um sentimento mundano que nos faz contar segredos lindos e indecentes; ou que nos deixa paralisados ao ver a amada saindo do mar. O poeta denuncia a instabilidade do espírito humano, "que ri e chora, que chora e ri".

O Chico é isso e muito mais, porque com a sua arte nos faz duvidar das crenças do dia a dia, nos provoca, nos deixa inseguro e depois nos conforta com uma linda canção de amor. Porque a verdade não é o seu tema. O seu objeto é, simplesmente, a vida.

Parabéns ao Francisco, porque o Chico é eterno!

terça-feira, 14 de junho de 2011

Nietzsche e o sexo oral (Ou "Como confortar um espírito puro")


Ressentimento (Walber Wolgrand)

Quando uma mulher diz que os homens,
Por se comportarem de certa maneira, “não prestam”,
Se referindo à infidelidade conjugal ou afetiva,
O faz como expressão da flagrante tentativa de esconder
Atrás do fantasma moral as suas frustrações,
Recalques, submissões, limitações diversas, etc.,
Sentindo-se, ao revés, diferente desses seres
Que, por sua natureza, são "condenáveis" e "dignos de piedade".
Denegrimos o outro para nos sentir superiores
Ou para esconder as nossas impossibilidades.
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Ganhou publicidade incomum o caso da adolescente que praticou sexo oral no interior do banheiro de uma escola pública estadual. O vídeo gravado bateu recordes de acesso na internet. A mídia marajoara não perdeu a viagem: explorou o assunto como pôde (ver matéria de capa do jornal “O Liberal” de 01 de novembro de 2009).

Esse fato me fez lembrar um acontecimento que se deu nos últimos anos da década de setenta. A “meia idade” já me permite fazer certas analogias. Refiro-me ao filme baseado na obra de Nelson Rodrigues “bonitinha, mas ordinária”. Tinha 11 ou 12 anos quando presenciei a conversa entre a minha mãe e minha avó. Elas foram assistir ao filme protagonizado por Lucélia Santos. A atriz acabara de fazer enorme sucesso como a personagem principal da novela “escrava Isaura”. Foram ver a personagem e voltaram falando “cobras e lagartos” da atriz. Só me restou a imaginação das “cenas quentes” que me foram injustamente sonegadas, afinal, o título do filme e as metáforas moralistas das minhas queridas ascendentes não me permitiram pensar em outra coisa: sexo.

Naquela época peitinhos, bundas e “xoxotas” não estavam explicitamente à mostra na mídia e o acesso aos filmes “proibidos” não era fácil. Ver parte das nádegas de uma mulher podia levar qualquer jovem ao clímax. O casamento ainda era o meio mais eficaz para legitimar (e viabilizar) a prática sexual entre os jovens, e o uso de anticonceptivos ainda era tabu.

As mulheres eram, sem qualquer pudor, submissas na vida privada e não ocupavam cargos de relevância na pública. Dentre as virtudes femininas estava a habilidade nas tarefas domésticas. Sonhavam com o príncipe capaz de lhes "salvar" das amarras paternas.

Em apenas três décadas houve uma revolução moral, política, profissional e epistemológica da nossa sociedade. No campo moral, a mulher saiu do casulo e passou a ser dona do próprio nariz. Muitas, inspiradas no exemplo da "rainha dos baixinhos", fizeram “produção independente” e o patriarcado ficou decrépito e pereceu; no político, a Constituição "Cidadã" assegurou direitos iguais para homens e mulheres; no profissional, as mulheres ocuparam espaços no mercado de trabalho que eram historicamente masculinos; no epistemológico, as novas tecnologias (celulares, computadores, etc.) modificaram significativamente o comportamento humano com a difusão quase instantânea das informações.

A mídia convencional também se modificou. Acompanhando a transformação política e moral, as cenas de nudez e sexo se tornaram corriqueiras na televisão e no cinema, estimulando um culto ao corpo desenfreado (não é sem razão que, hoje, as academias estão lotadas). Consequentemente as relações sexuais passaram a ocorrer cada vez mais precocemente e sem a necessidade de um relacionamento estável do casal. O consentimento foi tácito, mas inevitável. O comportamento humano inexoravelmente se modificou. À liberdade política sucedeu à sexual. No novo Estado brasileiro a proibição se tornou exceção, como que parafraseando o grande poeta Caetano Veloso: “É proibido proibir!”

O corpo (em especial o bunda) também se libertou. Grethem, Rita Cadilac, Carla Peres, Xuxa, Angélica e outras construíram, com movimentos sensuais, o imaginário popular na dança (inclusive infantil), sem precedentes na história nacional. Os ritmos musicais - forró, lambada, axé, brega, funk, etc. - também contribuíram para a popularização dos ousados movimentos. Tudo em perfeita sintonia com as letras das músicas, numa combinação de palavras e expressões inimagináveis em um passado relativamente recente.

No início da década de oitenta a palavra "pentelho" foi proibida na música "Ciranda da bailarina", do compositor Chico Buarque. Em menos de uma década os "Mamonas Assassinas" fizeram enorme sucesso utilizando em suas "músicas" expressões chulas, obscenas e fora de qualquer contexto lógico: "sabão crá-crá, sabão crá-crá, não deixe os cabelos do saco enrolar".

Num ritmo estonteante, pensamento e comportamento sofreram uma metamorfose radical. As mudanças somente não foram maiores porque as gerações atuais foram direta ou indiretamente educadas por aquelas que “beberam da fonte” dos valores de outrora, os quais, uma vez internalizados, não se dissipam pelos poros com facilidade. O espírito foi contaminado por uma praga deletéria. Eis o grande paradoxo da incontrolável e frenética transformação da nossa sociedade. As mutações estéticas e morais não foram acompanhadas pelo universo emocional do sujeito, ou seja, psicologicamente continuamos estacionados em algum lugar do passado. Pensamos e apreendemos o mundo de uma forma e o desejamos de outra. A experiência do doutor frankstein criou um ser híbrido e em dissonância consigo mesmo: com algumas faculdades Hipertrofiadas e outras pouco desenvolvidas.

A "educação" dos valores continuou a mesma. Alguns se modificaram, mas a forma de pensá-los e transmiti-los não se alterou. Nietzsche, filósofo alemão do século XIX, nos ensina que esse descompasso da ação (ou da vida) com o pensamento é característica da cultura ocidental. É nesse sentido que o homem moderno é hipócrita. Quer se emancipar e ao mesmo tempo quer se manter sob a proteção de elementos absolutos. Apesar das inegáveis transformações da sociedade, continuamos dependendo desses referenciais justificadores da vida. A transformação ocorre no exterior, mas o interior do sujeito permanece o mesmo.

Mas o que mantém essa imutabilidade psicológica? Nietzsche diria que ela é fruto de uma educação tradicional e essencialista, baseada na crença em valores supremos, por isso verdadeiros e imutáveis. Nesse contexto a liberdade é uma ilusão. Por isso os conceitos (amor, casamento, felicidade, honestidade, etc.) que utilizamos são os mesmo dos nossos antepassados. Os artifícios educacionais os mantém vivos em nosso pensamento.

Nietzsche diz que criamos esses ideais (como verdades) porque não nos sentimos fortes o suficiente para enfrentar a vida em sua nudez objetiva, limitada e carente de significado. Logo, buscamos uma justificação metafísica para ela. Recorremos à religião, à ética, à ciência, etc. Mas essa “estratégia” de superação das dores do dia a dia tem o seu preço. Ao negarmos a experiência do tempo e da morte, negamos também o CORPO, o AGORA, o CONFLITO e a TRANSFORMAÇÃO. Vivemos em um mundo em que a vida, no sentido da sensibilidade, é desprezada. O ocidente cultuou Apolo e desprezou Dionísio.

Para o filósofo, essa forma de o homem se relacionar com os fenômenos existenciais instituiu um tipo psicológico denominado “doente”. Este sujeito utiliza a palavra – os adjetivos morais – para causar no espírito dos "sadios" o sentimento de pecado, erro e transgressão. E quando estes introjetam esses sentimentos, eles já estão na seara dos "doentes" e não mais viverão a vida afirmativamente no fluxo dos sentidos, pois passaram a priorizar os valores absolutos como justificadores das suas existências. Essa situação fez com que o homem criasse uma imagem de si idealizada (superior a que pode ser vivida), para amenizar as suas desditas. Essa dependência psicológica somente é superada pelo "super homem" (ou "além do homem"), que é o ser - imaginado por Nietzsche - capaz de viver sem esses consolos metafísicos.

Utilizando essas premissas, podemos dizer que os jovens estudantes envolvidos no episódio foram vítima de uma sociedade hipócrita (e doente), que vive uma cultura do corpo e dos sentidos, mas julga e condena a partir de valores absolutos e inalienáveis. Uma sociedade que, em pleno séc. XXI, vê o corpo se libertar, mas ainda o reprime como sede do pecado. Que fecha os olhos para as transformações sociais, tratando os adolescentes idealmente como seres assexuados, impondo-lhes uma "verdade" anacrônica e castradora. A vida em suas peculiaridades foi desprezada pelo discurso universalizador, relegando a segundo plano o inestimável valor das vivências e experiências próprias.

Apesar da inegável mudança da sociedade, estamos ainda ligados aos cânones que nos são ensinados desde os primeiros anos de vida, consubstanciando-se em leis morais e jurídicas (como o Estatuto da Criança e do Adolescente), criando a “superestrutura” do meio onde vivemos. Somos educados para esses valores desde os verdes anos e, desde então, passamos a viver em função desses ideais, ignorando por completo a possibilidade de nos "construirmos" a partir de novas experiências. A verdade está fora de nós e ela é cognoscível. A educação nos torna “BONS”, no sentido moral; e “CIDADÃOS”, no jurídico. Fugir desse modelo é sinônimo de desajuste, o que justifica o uso de todos os mecanismos de contenção da conduta. Essa forma de administrar os problemas humanos possui o seu fundamento na necessidade que temos de nos sentir amparados por um referencial qualquer que nos conforte das adversidades para as quais não fomos preparados para lidar.

Nesse contexto, é uma estupidez criticar a ação dos adolescentes. Eles apenas se expressaram da maneira mais intrínseca à nossa natureza: por meio das pulsões sexuais. Mas os condenamos porque estamos aferrados ao pensamento de como a conduta humana deve ocorrer. Assim fomos ensinados e aprendemos a interpretar o mundo a partir de um "modelo" que funciona como sinônimo de normalidade. Este fato, antes de mais nada, deveria ser um mote para debates, discussões e análises no âmbito da comunidade acadêmica (e fora dela) com o propósito de construir uma forma própria e consciente de tratar a questão do sexo na adolescência, justificando o caráter pedagógico, acadêmico e crítico da escola. Ao revés, Prevaleceu o silêncio tenebroso e implacável, característico das sociedades autoritárias onde a verdade - por ser verdade – não permite o debate de idéias.

Em suma, os adolescentes foram sumariamente condenados por uma prática comum na sociedade brasileira hodierna, mas que o discurso "competente" ignora. Transferi-los de estabelecimento educacional apenas ratificará esse absurdo, pois, sem qualquer análise contextual, sedimentará o entendimento de que os alunos cometeram uma incomensurável transgressão. Fixará ainda a esdrúxula idéia de que a vida é um erro e que apenas transferimos (junto com os alunos) a responsabilidade de decidir o caminho que devemos seguir ante essa coisa mágica e desconhecida que é a existência.

E ainda temos de ouvir o discurso dos “especialistas" despreparados: "A escola está se degenerando!" A estes Nietzsche, se pudesse, diria: A escola apenas reproduz os valores supremos. O homem se degenerou quando “engoliu” a idéia de que existe uma verdade e que esta deve estar acima do próprio homem, isto é, acima da vida!

Dois sonetos de amor

No primeiro soneto temos o eu lírico feminino caracterizado pelo esforço em afastar o que atormenta e inquieta - mesmo que seja prazeroso -, posto que a fuga da dor é considerado um valor maior que a busca do prazer (visão invertida da realidade, promovida por questões morais). No segundo, temos a posição - contradita - do poeta.


I

Não quero mais o teu beijo
Que tanto prazer me trouxe
Que é úmido, inquieto e doce,
Mas mirrou o leite do meu seio.

É verdade que ainda te desejo
E a tua presença arde em meu ser,
Mas não quero o que dói e dá prazer;
Que ora é inteiro, ora é meio.

Hoje, por uma razão qualquer,
Só quero o que convém e apraz
Meu espírito de mulher,

Que cansado de sofrer
Prefere a calma de "amar" em paz
Que o torpor de tanto prazer.


II


Pensas que a dor
Não pode habitar um ser
Que experimenta o amor
E a delícia do prazer.

Por isso, ao revés,
Buscas a eterna felicidade
Alhures, sem saber que és
A diversa realidade,

Porém, ao "afastar" a dor,
Que evitas e que te faz sofrer,
Esqueces-te que a inquietude

Do ser é a sua virtude.
E ao negares a dor do prazer
Demites também o amor.

A pedagogia do medo (Ou "Para quem a liberdade é um valor?)

"Com que inocência demito-me de ser
Eu que antes era e nem sabia
Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
Ser pensante, sentinte e solitário
Com outros seres diversos e conscientes
De sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio
Ora vulgar, ora bizarro.
Em língua nacional ou qualquer língua
(Qualquer principalmente.)
E nisto me comprazo, tiro glória
De minha anulação."
(Eu, etiqueta - Carlos Drummond de Andrade)


Difunde-se em nossa sociedade, sem qualquer pudor, que vivemos num Estado Democrático de Direito. Democrático porque o poder, em tese, provém do povo; de Direito, porque as leis jurídicas regulam a relação que estabelecemos com os nossos concidadãos. Se esse discurso é verdadeiro, por que receamos em dizer o que pensamos, sentimos e valorizamos no local de trabalho, escola, ambiente familiar, etc.?

Essa forma inusistada de agir talvez tenha inspirado o poeta Vinícius de Moraes a dizer, no poema “O dia da criação”, que “os bares estão repletos de homens vazios”. Vazios talvez, mas o bar ainda é o lugar onde se pode dizer o que se pensa. Lá as pessoas são elas mesmas. Com uma ou duas na cabeça, mas elas mesmas. Pode-se xingar o mau patrão, falar mal da mulher lamurienta ou do marido desatento, criticar o professor chato e preciosista, e, com uma dose de ousadia, até se declarar insatisfeito com a opção sexual adotada.

Mas por que, em qualquer outro lugar (até na internet), tememos ser nós mesmos? Afinal o livre pensar tem ou não amparo na legislação pátria, em forma de princípio constitucional? Por que então curvamos a cabeça e falamos baixinho como se vivêssemos em pleno regime de exceção?

Partindo dessas premissas, penso que a questão que merece a nossa atenção não é se somos ou não livres, mas "o motivo de a liberdade não ser um valor para nós". Que tipo de pedagogia é essa que, em vez de nos estimular a prática de atos livres, nos faz temer a liberdade? O mais intrigante é que esse medo não é prerrogativa das pessoas com baixa formação acadêmica ou de níveis sociais e econômicos menos abastados. É um fenômeno que parece atingir a todos indistintamente.

Sem dar a devida atenção para esse fato, as nossas escolas, hipocritamente, alardeiam aos quatro ventos que objetivam formar "cidadãos críticos e autônomos", capazes de se lançar ao desconhecido em busca de novas experiências, vivendo para além das condições dadas cotidianamente. Ao revés, utilizam metodologia capaz unicamente de produzir seres mediocremente rotineiros; habilitados (e sem demonstrar qualquer inquietação) em aceitar a realidade dada, inserindo-se obedientemente num fluxo de acontecimentos que parece estar além das suas capacidades de deliberação. São “educados” para a obediência. Pior, são “educados” para GOSTAR da obediência e reconhecer nela o único caminho capaz de propiciar uma vida tranqüila e feliz.

Qualquer outra hipótese é sinônimo de transgressão, desordem, desarmonia, etc. Ficamos suscetíveis aos diversos castigos que os sistemas disciplinares possuem em nossa sociedade. Desde cedo esses mecanismos de contenção da conduta nos são ensinados e assim os internalizamos como justos, legítimos e necessários para o estabelecimento da ordem na vida gregária. Aprendemos, sem um exame acurado dos fatos, a temer a ocorrência do que nos causa dor e a desejar aquilo que nos afasta dela. Trocamos, assim, “voluntariamente” a possibilidade de experimentar a vida, de fazer com ela experiências de pensamento e ação, pela promessa de um conforto decorrente da posse de outros bens. Em outras palavras, somos gradativamente seduzidos pela promessa de felicidade, sem nos voltar reflexivamente para os motivos e fins do caminho que percorremos.

Institui-se, assim, uma pedagogia voltada para o cultivo do medo, ante o exercício da liberdade. Esta nos é apresentada como algo menos importante que um “prato de comida”. Como, desde os verdes anos, não cultivamos o gosto, nem reconhecemos a importância da liberdade, facilmente alienamos a nossa capacidade de produzir vivências, de elaborar novas relações e experiências com os acontecimentos. Trocamos o medo do desconhecido pela promessa de aquisição de bens conhecidos. De fato, como a liberdade pode ser um valor maior que um “prato de comida” se jamais a experimentamos? Nos ensinam, precocemente, que ela não tem valor prático. Que ela não mata a fome, não sacia as pulsões sexuais, não nos abriga das intempéries. E ainda, ao longo da vida, somos dissuadidos pelos exemplos que nos mostram os perigos do seu exercício. Ensinam-nos a conceber a liberdade como uma mera abstração, inferior às coisas concretas, com seus cheiros, cores e sabores. Parece que só os artistas e filósofos a amam e a inserem em seus “mundos paralelos”. No mundo “real”, não convém educar para o que não tem um sentido pragmático. A escola precisa nos colocar ante a realidade concreta e tangível para nos transformar em verdadeiros cidadãos.

Como a liberdade não é um valor para o sistema educacional de nossa sociedade, nós a trocamos por qualquer “prato de comida” e a alienamos com vistas a outros bens que nos garantam segurança e conforto. Mas, será essa troca legítima e digna de nós seres humanos? A liberdade, de fato, possui ou não algum valor?

Ora, se a repulsa à liberdade não é congênita (da natureza dos seres humanos), mas resultado de um processo cultural de adaptação e controle, como creio, há de se supor que ela decorra da relação ensino-aprendizagem, que é a característica dos processos educacionais em qualquer sociedade humana. Logo, podemos pensá-la a partir dos dois pólos que a compõe: Do ponto de vista de quem a ensina e do ponto de vista de quem é instruído. Partindo da infância do homem civilizado (quando a razão ainda não preside as suas ações) encontramos um procedimento comum, do ponto de vista metodológico, encetado pelo “professor”: procura-se conter a conduta do “aluno”, desenvolvendo-lhe certos sentimentos ante a realidade. O “professor” cria um discurso capaz de garantir que o “aluno” faça aquilo que por ele é querido. Assim, introduz-se o MEDO como instrumento pedagógico. O bicho-papão e todos os mitos cosmogônicos nisto se assemelham. Explicam os fenômenos e ao mesmo tempo condicionam o homem, segundo a vontade de quem detém o poder político. Em outras palavras, ENSINA-SE PARA CONTROLAR. Política e educação, desde o princípio, andam juntas.

*
"Boi, boi, boi, boi da cara preta,
Pega essa criança que tem medo
De careta.
Boi, boi, boi, boi do Piauí,
Pega essa criança que não gosta
de dormir"
*

Com o passar do tempo o homem entra na adolescência e os louros da razão principiam aparecer. Neste momento, há o reconhecimento – agora lógico - da existência de limitações (sistema de regras) que impõe deveres e obrigações. No plano individual, a moral cumpre o seu papel limitador; no coletivo, surge o Estado, com as regras jurídicas, para propiciar o bem e afastar o mal. Tem-se aí o amparo psicológico necessário para consolidar essa transferência de poder e a consolidação do medo – agora intelectualmente apreendido – por meio dos diversos sistemas disciplinares incorporados ao patrimônio psicológico do sujeito. A família, Escola, sociedade civil e a igreja cumprem esse "papel pedagógico". Tudo funciona como numa sociedade de escambo. Dá-se algo em troca de outro bem desejado. Mas o que essas instituições querem de nós em troca de tantos bens necessários a uma boa vida? Não seria a OBEDIÊNCIA aos ditames do sistema esse bem precioso, isto é, a alienação da nossa liberdade?

Mas como esse bem pode ser a liberdade se, como foi dito alhures, a trocamos por um simples “prato de comida”? Sequer temos a oportunidade de com ela nos acostumar. Mas, se é esse o bem que os detentores do poder querem, chegamos a uma dúbia conclusão. A liberdade é valiosa para uns e não o é para outros. Quem a tem em alta conta e, a todo custo, quer limitá-la são os poderosos. Quem a despreza, os dominados. Se este raciocínio logra algum sentido, podemos inferir que a liberdade tem a sua importância recuperada, porém pelos inquilinos do poder. Estes sabem que o seu exercício ameaça aquilo que mais lhes interessa: a manutenção das funções de mando na sociedade e a posse de bens materias. Por isso se empenham em financiar uma pedagogia voltada ao cultivo da dependência, da suborndinação e do medo. Patrocinam, desde os verdes anos, o condicionamento dos "educandos", estimulando-os a não ansiar pela busca de novas experiências. Por outro lado, ainda reprimem aqueles que se mostram indóceis a esses ensinamentos.

Chegamos assim ao ponto crucial da nossa caminhada. Podemos, enfim, dizer que a liberdade é um bem como outro qualquer, suscetível de manipulação pelo homem. Não a valorizamos porque não a experimentamos e não adquirimos a dimensão prática da sua importância. Depois somos vítimas de um processo educacional que naturaliza a busca irrefreada por outros bens considerados mais importantes para uma boa vida. Tudo ocorre sem que percebamos a interferência dos interesses políticos e econômicos que subjazem às ações humanas. Por isso não percebemos que a troca da liberdade por conforto e segurança é falsa, ilusória e totalmente desvantajosa a quem a realiza, porque não há garantia quando as decisões não nos pertencem. E se o poder de intervenção no curso dos acontecimentos foi transferido, a qualquer momento e sem permissão a nossa vida pode ser modificada de uma forma contrária aos nossos interesses.

Essa pedagogia não é mais que uma falsa pedagogia ou contra-pedagogia, porque ela presta um desserviço ao homem, salvo àqueles que dela consomem os frutos.

Por isso os filósofos e artistas se conflitam com os poderosos, porque percebem que não há ingenuidade nas ações humanas. Desmistificam os instrumentos ideológicos que estão a serviço destes, trazendo à baila as contradições da forma de existir humana. Desbanalizam os artifícios criados para enfraquecer o homem e que o torna presa fácil de si mesmo.

P.S. - Texto dedicado aos queridos alunos do curso de Licenciatura em Pedagogia do IFPA.