segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Sócrates, Chico e o carnaval (ou "Nós desatinamos")


Ela desatinou, viu chegar quarta-feira
Acabar brincadeira, bandeiras se desmanchando
E ela inda está sambando
Ela desatinou, viu morrer alegrias, rasgar fantasias
Os dias sem sol raiando e ela inda está sambando
Ela não vê que toda gente, já está sofrendo normalmente
Toda a cidade anda esquecida, da falsa vida, da avenida
Onde Ela desatinou...

Ela desatinou (Chico Buarque)
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Chico Buarque de Holanda compôs, no início da sua carreira, a música “Ela desatinou”. Nesta linda canção ele narra os desvarios de uma personagem que, apesar do término do carnaval, na quarta-feira de cinzas, continuou psicologicamente envolta nos encantos da festa e não parou de sambar.

Para o poeta a personagem desatinou porque se comportou instintivamente e ignorou o que a razão prescrevera: o fim da festa, o recolhimento das bandeiras e o perecimento da alegria. Ela desatinou porque se comportou em desacordo com os valores e ideais do seu tempo, vivendo, para além do permitido, uma “efêmera ilusão”. Ela desatinou porque não submeteu aos ditames da razão os prazeres da carne.

Nesta música, Chico retrata, com agudeza de espírito, paradoxalmente, o imaginário do homem moderno. Um ser extremamente racional, equilibrado, comedido e ponderado. Capaz de se conter o ano inteiro, com prejuízo do próprio bem estar, e deixar os instintos fluírem apenas nos quatro dias destinados à festa pagã. Qualquer coisa, além disso, é desvario e insensatez.

Chico faz uma crítica sutil e inteligente ao racionalismo exacerbado que contaminou a cultura ocidental, desde o surgimento de Sócrates, no séc V a.C. Nesse período, a Grécia Antiga vivia sob a tutela do deus Dionísio, em total sintonia com os instintos humanos. Não havia a preponderância do pensamento sobre os desejos. O imaginário grego estava alinhado com a representação do guerreiro forte e belo, capaz dos atos mais insanos de coragem e heroísmo.

Sócrates é o primeiro a introduzir no ocidente a idéia de limitação do corpo, de autocontrole e autonomia. No lugar do combate aos inimigos externos, o filósofo propõe a luta interior, cuja vitória se expressa pela supremacia do pensamento sobre o sentimento, dando ensejo à noção de autarquia. Com ele os gregos escolarizados começam a se identificar com as noções de harmonia, proporção, equilíbrio e moderação.

É nesse mundo caracterizado pela falta de limites que o velho filósofo surge para, contra tudo e todos, propor, como um louco revolucionário, o combate aos instintos.

Se a personagem do Chico vivesse na época de Sócrates, certamente não seria considerada insana, pois estaria vivendo na mais perfeita harmonia com o imaginário grego. Hoje, depois do transcurso de mais de 25 séculos, vivemos em consonância com o ideal da disciplina e limitação do corpo. Até para comer e beber somos parcimoniosos. Os únicos momentos que nos são permitidos “DESATINAR” são os quatro dias de carnaval, que, como uma “válvula de escape” das limitações que impomos a nós mesmos, nos alivia das amarras vorazes da razão.

Nesse contexto, não é difícil compreender porque somos seres estressados, ansiosos e “engessados” para a prática dos atos mais simples da vida cotidiana. Hoje, privilegiamos o pensamento à ação, o individual ao coletivo, o subjetivo ao objetivo e a alma ao corpo. Essa mudança psicológica operada ao longo dos séculos foi necessária e irreversível, mas podemos, pelo menos, investigar e compreender as suas causas para limitarmos o impacto dos seus perniciosos efeitos.

A rigor, penso que Chico Buarque, com a sua canção, nos adverte dos perigos do exacerbado racionalismo que, hoje, nos caracteriza. O poeta usa uma hipotética e apixonada personagem para nos dizer: "NÓS DESATINAMOS".

Toda teoria é uma ficção (ou "Um discurso é verdadeiro até que outro, mais verdadeiro, apareça")


O bom filósofo é aquele que sempre analisa os fatos e atos da vida humana dentro do contexto em que estão inseridos. A gravura acima é um bom exemplo dessa assertiva. E como toda construção teórica é uma ficção, convém examinar essa mentira a partir das crenças e sentimentos que a influenciaram. Somente assim será possível extrair-lhe algum sentido.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O homem é um ser cultural (ou "Nada se copia, tudo se cria")

Nada do que foi será
De novo do jeito que já foi um dia
Tudo passa
Tudo sempre passará

A vida vem em ondas
Como um mar
Num indo e vindo infinito

Como uma onda (Lulu Santos e Nelson Motta)
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Nós (homens) somos seres NATURAIS. Para sobrevivermos e satisfazermos as nossas carências (alimentação, abrigo, afeto, reconhecimento, etc), e nos perpetuar enquanto espécie, precisamos nos relacionar com a natureza. Mas esta relação é diferente da que os outros animais realizam. Estes, por serem determinados biologicamente, agem presos ao “aqui agora”. As nossas ações, por outro lado, são UNIVERSAIS, ou seja, ultrapassam as condições que nos são dadas, pois não estão limitadas às necessidades atuais e momentâneas.

O que recebemos dos nossos antepassados e aprendemos na interação com o mundo transmitimos para as gerações subsequentes, permitindo-lhes que não partam do “zero”. Assim, gradativamente, “humanizamos” a natureza numa relação dialética, posto que ao alterá-la, modificamo-nos também, num processo infinito de interdependência que podemos denominar de PROCESSO DE PRODUÇÃO DA EXISTÊNCIA HUMANA. Esse processo é social, visto que não é um único homem que o realiza, mas todos nós enquanto espécie; e, embora na base das relações que estabelecemos com a natureza esteja o TRABALHO, também criamos IDEIAS e os mecanismos para as suas elaborações. Dentre as idéias criadas, parte delas constitui o conhecimento referente ao mundo, tais como a Ciência, Filosofia, Mito/Religião, Arte e Senso Comum.

Mas não é a simples carência que possuímos, enquanto seres biológicos, psicológicos, sociais e espirituais, que nos torna capazes de CONHECIMENTO. É preciso o concurso de certas faculdades ou atributos para que a nossa ação, neste mundo, seja diferenciada. Nesse contexto, a RAZÃO e a MEMÓRIA desempenham um papel fundamental ao permitirem que organizemos os nossos pensamentos e possamos nos expressar por meio de símbolos (linguagem conceitual). Dessa forma, criamos outra dimensão de existência: a ABSTRATA ou TEÓRICA, onde situamos os fatos da vida no tempo (passado, presente e futuro) e no espaço, instituindo a história.

Somos históricos porque construímos a nossa existência a cada momento e de forma singular, imprimindo, na realidade, a indisfarçável marca da nossa mão. Esse PODER que temos de instituir o novo determina a forma peculiar da relação que estabelecemos com a natureza, que, sobretudo, é intencional e planejada. Em outras palavras, agimos CONSCIENTEMENTE, porque sabemos que sabemos.

O resultado da nossa ação consciente e transformadora na natureza, para além do "aqui agora", com vistas à satisfação das nossas carências, chama-se CULTURA.

Dentre as manifestações culturais, a Religião é o tipo de conhecimento (ou teoria) do mundo que tem como pressuposto básico a revelação da “verdade” por meio de um intermediário ou profeta. Mas essa revelação somente tem “valor de verdade” para quem nela acredita (fé), posto que o que é revelado normalmente é atribuído a um ser supremo (Deus) que, por sua possível onipotência, “conhece” os mistérios da natureza. Por ser uma teoria dada (não perquirida), a Religião é, por excelência, caracterizada pelo dogmatismo (embora os demais tipos de conhecimentos também possam ser dogmáticos), pois a sua obtenção não é precedida de um trabalho crítico/investigativo, mas na pacífica crença do que é revelado.  

A Arte por sua vez é uma teoria que tem na liberdade de expressão a sua principal característica. A linguagem, neste caso, não é limitada por normas (como é comum na Ciência e Filosofia), nem possui uma forma pré-estabelecida. Embora o homem também use o discurso racional quando recorre a Arte para falar sobre a natureza, possui na intuição racional o seu ponto forte, visto que, neste caso, não precisa demonstrar o “real”, mas apenas mostrá-lo ou revelá-lo. Com o pensamento artístico o homem pode falar do geral e do particular sem possuir pretensões universais, pois, diferentemente do cientista e filósofo, não está empenhado na obtenção de uma teoria que tenha validade para todos os seres humanos, mas, simplesmente, mostrar como a realidade se revelou.   

Por outro lado, o Senso Comum é o tipo de conhecimento sem o qual, simplesmente, não existiríamos neste mundo. Neste caso o homem pensa a natureza sem o amparo de um método definido (ametódico) e, por esse motivo, não consegue conhecer os fenômenos em suas causas mais intrínsecas (superficial), nem fazer ampliações intelectuais que lhe permita relacionar acontecimentos aparentemente sem nexo (assistemático). Apesar de tudo é um tipo de conhecimento racional da natureza que combina as experiências humanas, do indivíduo e do grupo, permitindo a obtenção de conclusões particulares (que servem apenas para aquele caso) da natureza como se universais (para todos os casos) fossem. Mesmo com essas e outras limitações, é a partir do senso comum que o homem elabora as formas mais sofisticadas de conhecimento (filosofia e Ciência), visto que muitas conclusões empíricas são o ponto de partida para a reflexão filosófica e/ou pesquisa científica.

A Ciência, como foi dito, parte do Senso Comum, mas logo se diferencia dele pelo MÉTODO e pela “validade universal” de suas proposições. Aliás, se o homem não elaborar, neste caso, um discurso universalmente válido não estaremos no âmbito do conhecimento científico. Mas para ser um conhecimento que vai das raízes (causas) aos efeitos mais gerais dos fenômenos, referindo-se a um número significativo de casos semelhantes, o método científico não pode ser aplicado a todo e qualquer acontecimento, mas apenas aqueles que podem ser mensurados (quantificados) e submetidos à experimentação e que possam, de alguma forma, ser passíveis de verificação por um número significativo de pesquisadores (comunidade científica). A maior precisão científica, com relação aos outros tipos de conhecimentos, depende do método (com emprego da matemática e instrumentos que tornam a observação mais precisa) e da forma circunscrita como aborda o seu objeto de estudo, posto que a ciência é um olhar bem limitado ou restrito da realidade. O todo, nesse sentido, jamais será objeto da Ciência, mas apenas uma parcela bem delimitada da natureza, exatamente aquela que pode receber tratamento científico.

Por fim, a Filosofia, como a Ciência, é um conhecimento racional da natureza que também possui pretensões universais, porém é sistemática na forma de abordar o seu objeto de estudo, pois não abdica ao direito de compreendê-lo sempre a partir do contexto (sociológico, histórico, econômico, político, etc.) no qual está inserido. A Ciência é sistemática com relação a um mesmo objeto; a Filosofia, com relação a objetos distintos. Filosofar é reunir de forma rigorosa (linguagem técnica) o saber fragmentado da Ciência e dos demais campos do conhecimento a fim de garantir um tipo de compreensão da realidade que somente é possível quando juntamos as peças do quebra cabeça da natureza. A filosofia é a ilusão do saber interdisciplinar da realidade, para tanto usa a lógica e história como métodos básicos.   
     
É nesse sentido que podemos nos considerar, enquanto capazes de produzir teorias científicas, empíricas, artísticas, religiosas e filosóficas, SERES CULTURAIS.         

domingo, 20 de fevereiro de 2011

O pensamento ético de Sócrates (ou “Virtude é conhecimento”)



“Qual é o parasita mais resistente: Uma bactéria,

Um vírus, um verme intestinal? Uma IDEIA re-

Sistente a uma mente contagiosa...

Uma vez que uma IDEIA se apossa do cérebro é

Quase impossível erradicá-la. Uma ideia que este

Ja totalmente formada, totalmente compreendida."

(Dom Coob - Leonardo DiCaprio - "A Origem")
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No séc. VI a.C. surgiram os primeiros filósofos gregos, conhecidos como NATURALISTAS (ou Pré-Socráticos) por causa das preocupações teóricas que possuíam: o cosmo (natureza). Foram os primeiros a utilizar a lógica e a razão para conhecer os fenômenos, num mundo dominado pela explicação mítica. Nesse período, Atenas era apenas uma cidade como outra qualquer no mundo grego.

Em meados do séc V a.C., sob o comando de Péricles, a cidade de Atenas prosperou financeira, cultural e belicamente, consolidou a sua liderança e passou a comandar a "LIGA DE DELOS, espécie de confederação composta por várias cidades gregas. Mas o seu domínio sob o mundo grego não era completo, pois Esparta, cidade localizada no sul da Grécia, liderava outro bloco de cidades-estado que compunham a “Liga do Peloponeso”.

Mas Péricles não estava contente e objetivava alcançar o controle total da Grécia., então submeteu à assembléia a declaração de guerra contra Esparta. O espírito arrogante e orgulhoso do povo ateniense foi decisivo para que a proposta do estadista fosse aprovada sem ressalvas. Assim, em 431 a.C. começou a “Guerra do Peloponeso” entre as duas potências do mundo grego, que terminou em 404 a.C. com a vitória dos espartanos.

É nesse ambiente de intenso conflito e instabilidade política que Sócrates (469- a 399 a.C.) viveu. Ele caminhava pelas ruas de Atenas falando e discutindo com qualquer um que encontrava. Embora mais de 150 mil cidadãos estivessem concentrados atrás dos muros da cidade, durante a guerra contra Esparta, ele estava satisfeito em confundir as pessoas e pensamentos, com o objetivo de desconstruir as crenças não fundamentadas pela razão.

As preocupações do filósofo não eram com a natureza. Ele usou a nova maneira de pensar, instituída pelos naturalistas, para estudar as pessoas. O seu objeto era o indivíduo, em oposição à visão corrente dos atenienses que, pela prática democrática, priorizavam o coletivo. Sócrates, decididamente, não era um democrata.

Sócrates pensava que as pessoas deviam tomar decisões baseadas no próprio entendimento do que é certo ou errado. A liberdade de pensamento devia ser suprema, mesmo que gerasse atrito com os outros cidadãos. Ele dizia: “uma vida não examinada não é digna de ser vivida”.

Humilhados e com o império perdido na guerra, os atenienses procuraram alguém, dentro dos muros da cidade, para levar a culpa. Sócrates era crítico dos processos de pensamento e imaginação dos atenienses. Questionou a sede de glória e a maneira como os gregos viviam. Em 399 a.C. o filósofo foi acusado de tentar contra os deuses da cidade e corromper a juventude. Foi julgado e condenado à pena de morte, bebendo a cicuta.
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O INTELECTUALISMO SOCRÁTICO.


É comum o ser humano agir cotidianamente impulsionado pelas inclinações ou paixões em detrimento do que a razão orienta. O termo grego para designar esse tipo de conduta é AKRASIA, ou seja, aquele que fraquejou ao agir ou, como dizemos popularmente, “não teve força de vontade”. A razão, neste caso, indicou o caminho, mas o sujeito não teve disposição para seguí-lo. Este é, por excelência, para os gregos, o AGENTE ACRÁTICO, isto é, aquele cuja ação é produto dos desejos.

Mas para Sócrates o agente acrático é uma ficção, ele não existe. O que há é FALTA DE CONHECIMENTO. Se o agente agiu mal é porque não sabia como se conduzir em determinada situação. Por isso, para o filósofo, "virtude (areté) é conhecimento (episteme)", na medida em que somente ela torna a ALMA - que caracteriza o ser humano - boa e perfeita e conduz o homem às boas ações. Sendo virtuoso, ele agirá por "necessidade", posto que os valores alcançados pelo pensamento racional são universais e necessários e a ele se imporão.

Hoje a idéia de que "basta conhecer para ser bom" parece ingênua num mundo que introjetou o entendimento de que somente algum grau de COERÇÃO é capaz de evitar que o homem seja mau. Além do mais, essa maneira de compreender a conduta humana é deficitária porque isola o agente do contexto em que está inserido, desprezando outras variantes que também interferem em seu comportamento. Por isso, para compreendermos a filosofia de Sócrates, é necessário considerá-la no ambiente em que o filósofo viveu e os motivos que o levaram a prescrever esse caminho moral para os seus concidadãos.

A Atenas do séc V a.C. era uma Cidade-Estado envolta em permanentes conflitos. A linguagem escrita não era popular e o mito, enquanto oralidade, preponderava como forma de explicação da realidade. O ambiente ateniense era propício à proliferação de toda sorte de preconceitos e dogmas, capazes de determinar o destino das pessoas e da cidade. É nesse conjunto de circunstânicas que o filósofo se opôs aos sofistas, professores itinerantes que ganhavam a vida ensinando a arte da argumentação, segundo as conveniências e interesses momentâneos dos gregos. Sócrates achava que somente a busca da verdade era digna dos seres humanos, enquanto pensamentos universais e necessários. A instabilidade, manipulação e corrupção de sua época o incomodavam.

É nesse contexto que Sócrates, com o seu método, combateu os conceitos e crenças enraizadas no imaginário do povo ateniense. Ele atacava os preconceitos e dogmas mostrando as suas inconsistências internas, as suas ilogicidades. Ele demonstrava por relações lógicas que a apreensão do significado de certos conceitos, juízos e raciocínios não eram consistentes a ponto de serem considerados conhecimento. Por exemplo, diante da afirmação “as mulheres são inferiores” ele, pela comparação analítica dos conceitos, mostrava que o conceito-predicado “INFERIORES” não está contido e satisfaz plenamente o conceito-sujeito “MULHERES”. Dessa maneira ele demonstrava a inconsistência da forma ateniense de pensar. Mas para o filósofo esse “equívoco conceitual” não era intencional (voluntário), mas fruto da ignorância de um povo imerso em crenças não justificadas pela razão. Para Sócrates somente o conhecimento racional dos conceitos permitiria ao homem agir com vistas ao BEM (prosperidade), livrando-o dos preconceitos e das convenções que o subjugava. Mas o filósofo não ditou valores, apenas propôs um método para demolir as visões correntes, talvez para evitar que possíveis respostas definitivas se cristalizassem em novas convenções, contra as quais tanto lutou.

Embora as idéias de Sócrates se dirigissem ao campo moral, não há dúvida que possuíam um significativo apelo educacional e político, na medida em que valorizavam, como a mais expressiva manifestação da alma humana, o autodomínio (eukratéia), enquanto o controle de si mesmo ante os estados de prazer, dor e cansaço. Segundo o filósofo, todos seriam capazes de conhecimento (até o mais humilde cidadão), logo aptos para enfrentar o papel dos mitos, que impunham de fora as ideias e condutas a serem observadas. Pensava que o domínio da racionalidade sobre a animalidade levaria os gregos a se libertarem das amarras do preconceito e das imposições políticas do seu tempo. Surge assim o sujeito autárquico ou autônomo, a quem basta ser virtuoso para ser feliz. Defendendo o primado da razão, Sócrates dá o primeiro passo para conduzir a felicidade para o âmbito do indivíduo, isto é, enquanto elemento subjetivo.

Essa posição de conceber a virtude como ciência; e o vício, ignorância é conhecida como INTELECTUALISMO SOCRÁTICO. Nesse prisma, ninguém peca voluntariamente, mas fá-lo pela ignorância do bem. Embora essa forma de pensar o comportamento humano pareça anacrônica para o homem contemporâneo, ela ainda faz eco ao dar importância para a consciência como uma determinante da ação moral.

O homem, segundo Sócrates, sempre agiria de acordo com o que conhece e jamais escolheria aquilo que não é melhor para si. Embora hoje possamos facilmente refutar esse entendimento, reconhecendo a importância da vontade nas escolhas das ações que praticamos, por outro lado não podemos desprezá-lo pela importância que confere aos componentes racionais dos atos tidos como morais. Quanto mais consciente é o sujeito que os pratica, mais responsável pelas suas ações ele o é.

A proposta filosófica de Sócrates torna compreensível o destino que lhe foi reservado: a morte bebendo cicuta. Ao defender a supremacia do homem com relação a si mesmo, também o fez com relação à cidade, pois não se conformava com a maneira como os atenienses viviam.

Por isso, para o filósofo, o agente acrático não existia. Se alguém errou ao agir é porque ponderou equivocadamente as diversas possibilidades existentes para aquele caso e arriscou sem sucesso. Neste caso, houve um mau uso da razão. Sócrates tentou, a seu modo, acordar os seus concidadãos do "sono dogmático", extremamente lucrativo para a aristocracia ateniense.

"Quando alguém, por exemplo, adquire um automóvel, por meio de financiamento, e não consegue pagar o débito, não agiu por má-fe, mas porque calculou equivocadamente as obrigações mensais que teria que cumprir e apostou sem o amparo do conhecimento. Em outras palavras, o conhecimento que o agente possuía sobre o assunto não lhe permitiu avaliar corretamente o perigo que a operação financeira continha, logo, a falta de conhecimento o impediu de fazer a melhor escolha."

Para Sócrates, quem conhece necessariamente faz boas escolhas, porque não é guiado pelas paixões. Neste prisma um novo herói emergiu na Grécia Antiga. Não é mais aquele capaz de vencer os inimigos, os perigos, as adversidades e cansaços externos, mas capaz de vencer a si mesmo, e, desta forma, se aproximar dos deuses.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Os “piratas” do conhecimento (ou “O controle da produção intelectual”)

A Declaração dos Direitos Humanos e a Constituição Federal estabelecem que todos têm direito à cultura e ao lazer em sua comunidade. No entanto, apenas 13% dos brasileiros freqüentam cinema; 92% dos brasileiros nunca entraram em um museu; 93,4% jamais freqüentaram alguma exposição de arte; e cerca de 80% nunca assistiram a um espetáculo de dança. Além da necessária democratização do acesso aos bens e equipamentos culturais, é preciso também reconhecer e valorizar as múltiplas expressões culturais populares.
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A palavra “pirataria” nos remete a práticas malévolas, normalmente desenvolvidas por saqueadores dos mares e outros mal feitores. O pirata é um fora da lei, cruel e sanguinário. Desde criança internalizamos a imagem do nefasto Capitão Gancho perseguindo o bondoso e angelical Peter Pan. Não é sem razão, portanto, que rechaçamos qualquer ação que possa ser adjetivada como tal.
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Por outro lado, o legislador brasileiro tornou crime a prática da “pirataria”, considerada em termos legais como “violação de direito autoral”. O artigo 184 do Código Penal Brasileiro e a Lei nº 9.610/98 tratam da matéria.
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A mídia, por sua vez, cumpre o seu papel ideológico alardeando aos quatro ventos que a “pirataria” produz graves prejuízos econômicos ao país. Argumentam que a compra das cópias “piratas” implica, proporcionalmente, na redução da venda das “originais”, como se o sujeito que compra aquela fosse necessariamente comprar esta. O Direito e a Economia fundamentam essas posições, mesmo quando não há comprovação fática de tais argumentos.
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Sem deixar de atribuir certa razão a esses entendimentos, seguirei aqui outro caminho. Não para fazer uma mera apologia da “pirataria”, mas para desmistificar aquilo que só é um mal quando sofre a manipulação humana. O bem e o mal – que me desculpem os cristãos – são produtos das ações humanas, que, a rigor, não são ingênuas.
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Priorizarei neste artigo a abordagem histórica, não por simples razões metodológicas, mas por julgá-la mais apropriada ao objeto em exame. Utilizarei dois exemplos que me parecem emblemáticos e adequados aos meus propósitos: A Reforma Protestante e a “Descoberta” do Brasil.
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O alemão Martinho Lutero (1483 – 1546), monge agostiniano com rara capacidade intelectual, traduziu a Bíblia e permitiu que milhares de pessoas tivessem acesso ao texto sagrado e, de quebra, publicou um pequeno catecismo para que os pais pudessem ensinar aos seus filhos as bases da fé cristã. Como não encontrou acolhida para suas idéias, foi excomungado pela Igreja Católica em 1521.
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Lutero, à revelia do poder papal, “pirateou” a Bíblia e permitiu que os menos educados a lessem, dando ensejo a uma verdadeira revolução na Igreja do seu tempo.
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O que fez Lutero ao traduzir a bíblia do latim para o alemão? Quebrou o monopólio de interpretação das Sagradas Escrituras, concentrado nas mãos da Igreja Católica. Para os integrantes da Igreja, Lutero foi um pernicioso “pirata”; para as pessoas comuns do seu tempo, um “Robin Hood” capaz de tirar do interior dos muros dos mosteiros o controle do saber religioso, distribuindo-o aos pobres e permitindo-lhes um contato direto com a Bíblia. Se não fossem as ações desse “pirata” renascentista, os ocidentais poderiam ter ficado por bem mais tempo sob a tutela de um poder religioso corrupto, pagando indulgências e outras barbaridades para “entrarem no reino dos céus”.
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Já Pedro Álvares Cabral e seus prosélitos, indo para as Índias, “erraram” o caminho e chegaram à costa brasileira. Aportou com várias caravelas e, amistosos, vieram dar boas vindas aos “selvagens” da America do Sul.
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Depois de nos parabenizar pelas belezas naturais, deu-nos alguns espelhos, creme de barbear e desodorante aerosol em troca do nosso “PAU”. Percebendo a nossa assaz ingenuidade, atravessaram os mares e se localizaram em solo brasileiro para melhor nos “piratearem”. Ensinaram-nos a ser civilizados e, em troca, levaram a nossa cana de açúcar, ouro, prata e outras coisas de pouca significância.
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Ficamos tão gratos aos gentis “piratas” que os louvamos em nossos livros didáticos como nossos descobridores. Se não tivessem nos “descoberto” ainda estaríamos “cobertos” ou jamais teríamos “sido”. Surrupiaram nossas riquezas naturais sem qualquer pudor e ainda os adoramos. Nomeamos ruas, praças e outros logradouros com os nomes dos nossos heróis portugueses: “Pedro Álvares Cabral”, “D. Pedro I”, “D. João”, “Princesa Isabel” e outros. No ano de 2000 comemoramos cinco séculos de “descobrimento”, como se não estivéssemos aqui antes de 1500.
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O “pirata” Lutero prestou um inestimável serviço à humanidade, mas a elite do seu tempo o execrou. Foi, inclusive, excomungado pela Igreja. Ao revés, os “piratas” portugueses que nos exploraram durante séculos, ainda hoje são louvados como grandes homens (e mulheres) da história do nosso país. Isso mostra que o “pirata” não passa de um conceito construído e manipulado pelas elites letradas das sociedades humanas. O discurso sempre construiu heróis e vilões ao sabor de quem os produz.
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Hoje, quem copia um CD, DVD ou um livro sem o consentimento do proprietário do direito autoral é um “PIRATA”. Não apenas os juristas e economistas entendem dessa maneira, mas a população em geral. Mesmo quem consome esses produtos internaliza a idéia de que tal prática é ilegal, ilegítima e imoral.
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Se nos limitarmos a examinar esse fenômeno a partir das ações praticadas, não teremos dificuldade em determinar quem são os mal feitores. Mas se levarmos em consideração as conseqüências dessas ações, certamente chegaremos a outros resultados e poderemos identificar bandidos bem mais perniciosos que estes.
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A ação de “piratear” nos remete a tomada violenta de um objeto que está em poder do seu legítimo proprietário. As conseqüências dessa prática, por sua vez, indicam que a vítima foi privada do usufruto de algo que lhe deveria servir. Em ambos os casos, o direito de uso de um bem ou serviço é usurpado.
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Partindo dessas premissas, examinemos a maneira como os produtos da cultura são apropriados e utilizados em nossa sociedade. Alguém que comercialize uma cópia não autorizada de um DVD por dois reais e cinqüenta centavos, gerando lucro para toda a cadeia produtiva, é considerado um maledicente“pirata”, enquanto o "original" correspondente pode ser comercializado, em média, por cinqüenta reais que o ato é considerado legal e benéfico a todos.
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A lei protege a propriedade intelectual com eficiência, inclusive criminalizando a conduta, mas não assegura aos cidadãos, em especial aos menos favorecidos social e economicamente, o acesso aos mesmos produtos. O nosso Estado "Democrático de Direito" permite a apenas alguns cidadãos o usufruto dos bens culturais, sob o insólito argumento da observância às normas civis. Afinal, que Estado é este que, em tese, assegura a todos o acesso aos bens intelectuais e materiais, mas, na prática, não o faz?
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No Brasil o "grosso" da população intelectualmente ativa pouco freqüenta os espaços culturais (teatro, cinema, museus, etc.) que, a rigor, deveriam ser de fácil acesso a todos os cidadãos, enquanto instrumentos valiosos para a excelência nas ações da vida pública e privada. Em outras palavras: como justificar racionalmente a privação à cultura, numa sociedade que tem como princípio maior a igualdade e o equilíbrio no usufruto dos bens e serviços?
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A resposta é simples. O Estado também é um produto da cultura – enquanto criação humana – logo, se presta a atender interesses de quem o controla. Dentre os principais interesses estão a dominação e o controle sobre os outros membros da espécie. O discurso que proclama a igualdade, fraternidade, bem geral, etc. é lacunar e não corresponde a realidade dos fatos. O Estado nunca esteve a serviço de todos. Na prática, a elite manipula o poder estatal e o canaliza para atender os seus intresses, sonegando dos legítimos proprietários o que, em tese, lhes pertence. Eis que, pelas consequências das ações, também se configura um caso típico, mas sutil, de “pirataria”. Um ato sorrateiro que desvia o produto antes de chegar ao domínio do legítimo usuário. E sendo este bem a produção intelectual, mais perniciosa e ilegal é a conduta, pois priva o homem comum de aprimorar o pensamento abstrato, dificultando-lhe a compreensão dos mecanismos da sua própria existência. Neste caso a CONSCIÊNCIA é o objeto da “pirataria”.
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Por isso, não tenho dúvida que certas ações consideradas “piratas” pelo discurso oficial – como as "praticadas" por Lutero – podem ser benfazejas quando levam a informação e o conhecimento àqueles que, de outra forma, e pelas “vias legais”, jamais os teriam. Ou seja, quando leva os produtos da cultura aos destinatários sem discriminá-los.
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A criação intelectual não pode ser um mero produto econômico e político destinado a atender interesses específicos, mas, antes, deve servir a toda coletividade. A obra que não está a serviço do todo não deve ser considerada como cultural, porque não contribui para o aprimoramento do que determina a dignidade da pessoa humana: o pensamento racional. Quando este objetivo se sobrepõe à obra, ela se torna um OBJETO de outra natureza, pois transvestiu-se em uma coisa econômica, política, etc., e pode ser utilizada como aprouver aos seus algozes para satisfazer aos seus próprios interesses.
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Mas, como na Idade Média - onde o monopólio da cultura estava sob o controle da Igreja -, o homem moderno subverte as produções intelectuais para beneficiar a si próprio. Apesar de alardear avanços na forma de viver em sociedade, continua utilizando o poder que as idéias possuem como instrumento de subjugação dos seus semelhantes. Por isso não lhes interessa socializar os frutos do conhecimento humano (Ciência, arte e filosofia).
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O certo é que uma sociedade propriamente humana ainda é uma quimera (e talvez sempre o seja), onde os bens materiais e intelectuais sejam igualmente partilhados. O discurso se encarrega de ocultar as diferenças, adjetivando certas ações, criminalizando-as ou consentindo-as segundo os interesses de quem detém o poder político. Diferentemente do que se pensa a produção intelectual nunca esteve a serviço da liberdade humana, apenas produziu outras formas de dominação.
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Moral da história: Enquanto os cidadãos comuns pirateiam CDs e DVDs, os "inquilinos do poder" pirateiam o pensamento, o sentimento e até a esperança destes.

O preconceito é um conceito mal compreendido (ou "A crença no discurso generalizante")

Resolvi escrever este pequeno artigo depois que alguns internautas encaminharam mensagens ao "blog do Wolgrand" demonstrando expresso desconhecimento do que é o PRECONCEITO. O mais interessante é que, em geral, as pessoas não se consideram preconceituosas, mesmo quando os seus discursos as contradizem.

Penso que, inicialmente, é importante saber o que é um CONCEITO para atingir o nosso propósito. Um conceito é uma construção do intelecto, uma abstração. Diz Aristóteles que é um ato intelectual que parte da observação dos casos particulares, dos quais “retiramos” o que é comum a todos, resultando numa noção geral. É a essência, a substância de um SER.

O conceito aristotélico corresponde à idéia platônica. É um universal. A diferença é que naquele ele é construído pelo homem a partir da observação dos seres concretos. Para Platão ele existe independente dos seres humanos, é eterno, e é intuído direto pelo pensamento, em razão de a alma o ter contemplado antes de se submeter aos limites de um determinado corpo terreno.

Seja como for, é fácil perceber que somente o homem é capaz de pensar por meio de conceitos. O nosso pensamento (e linguagem) é conceitual. Por isso somo capazes de construir realidades para além do aqui agora. Recuperamos o passado e projetamos o futuro. Daí a possibilidade de planejarmos o que ainda está para ocorrer.

Os conceitos, que são as construções mais simples de pensamento, correspondem às palavras, os nomes, os vocábulos, etc. Estes se combinam e formam as frases, as orações, os versos, as sentenças, os juízos, etc. A combinação destas, formam os períodos, os raciocínios, as estrofes, etc, que, por fim, se constituem em teorias, sejam elas científicas, filosóficas, artísticas, empíricas ou religiosas.

Os juízos - que podem ser de valor, realidade ou gosto - são compostos a partir da combinação de conceitos, da qual se tenta utilizar alguns para esclarecer outros, alargando, assim, a nossa compreensão sobre um determinado acontecimento. Vemos isso com bastante clareza quando estudamos, na disciplina Língua Portuguesa, os TERMOS DA ORAÇÃO. Um conceito é o substantivo, outro é o verbo e outro é o adjetivo. Ex: a casa é bonita.

Ao conceito casa (substantivo) é imputado o conceito “bonita” (adjetivo), ligados pelo conceito SER (verbo), formando uma oração que expressa a ocorrência de um determinado fenômeno, isto é, o fato de a casa ser bonita.

Os conceitos são, portanto, condições para a elaboração de pensamentos. Sem eles não apreenderíamos teoricamente a realidade. Mas essa apreensão pode se configurar num equívoco, quando combinamos conceitos que estão em desacordo com aquilo que eles anunciam, isto é, quando ampliamos o alcance de um conceito para além daquilo que ele comporta.

Esse erro de pensamento nem sempre é percebido porque os juízos gerais se adéquam, pelo menos, a uma parcela da realidade, o que lhes confere certo sentido. Mas, como não comportam toda a realidade que anunciam, se bem o examinarmos, perceberemos a dissonância que eles possuem com os fenômenos por eles descritos. A rigor eles são juízos incorretos, decorrentes de generalizações mal feitas (conhecidos no campo das falácias como GENERALIZAÇÕES APRESSADAS).

São esses tipos de pensamentos (trabalhos intelectuais) que se consubstanciam em PRECONCEITOS. Eles são, sobretudo, fruto da crença dogmática em pensamentos mal elaborados que se cristalizam em nosso intelecto.

Quando dizemos, por exemplo, OS HOMENS SÃO INFIÉIS, fazemos uma ampliação do alcance de certos conceitos de forma equivocada, posto que o conceito INFIEL não se conforma e satisfaz plenamente à definição do conceito HOMEM, visto que a infidelidade não é um atributo necessário deste conceito. Além do mais, como as mulheres também podem ser infiéis, a proposição em questão é, mais uma vez, desconstruída em seu "valor de verdade". Logo, esse juízo é precário, o que o torna um pensamento PRECONCEITUOSO.

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Na elaboração dos pensamentos, o verbo SER também é utilizado indevidamente quando o empregamos de forma absoluta, visto que alguém pode ser infiel num momento e não o ser em outro. A qualidade ou atributo de um ente não se mantém estável, mas se altera geográfica e temporalmente.

A inflexibilidade das idéias que formam as nossas crenças cotidianas, sem a devida crítica, institui essa visão equivocada do mundo que, de alguma forma, em sua superficialidade, fazem com que o ser humano se aferre a certas proposições como se fossem verdadeiras.

Dizer, por exemplo, que os ANÔNIMOS SÃO COVARDES, constitui uma assertiva preconceituosa, pois o conceito covarde não constitui um atributo necessário do conceito anônimo. Por isso ouso dizer que o PRECONCEITO, em sua essência, não passa de um conceito mal compreendido.
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Em tempo: Analisando a imagem acima, verificamos que o conceito CONFIÁVEL não está, necessariamente, contido como atributo do conceito ILETRADO. Assim são os preconceitos, sutis como os mais voláteis dos gases.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Grécia – O surgimento da democracia (ou "A democracia é filha do conflito")

 
Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas:
Sofrem pros seus maridos,
Poder e força de Atenas.
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Quando eles embarcam soldados
Elas tecem longos bordados;
Mil quarentenas.
E quando eles voltam, sedentos,
Querem arrancar, violentos,
Carícias plenas, obscenas.

 Mulheres de Atenas (Chico Buarque)
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Para compreendermos as condições de surgimento da democracia, na Grécia Antiga, é necessário retrocederemos ao período em que viveu o político ateniense Clístenes (565-492 a.C.), no séc. VI a.C. Ele foi educado para ser um aristocrata, membro da classe que controlava tudo que acontecia na sua cidade.

Atenas se localizava próximo ao Mediterrâneo e, nessa época, era como uma vila pouco próspera. A cidade foi construída na Acrópole (parte superior de uma montanha íngreme), facilitando a defesa dos ataques inimigos.

Nesse momento, ler e escrever eram habilidades raras e a expectativa de vida era, em média, de apenas 15 anos. Atenas não era uma sociedade de iguais. Os atenienses comuns viviam sob o comando dos aristocratas (como o pai de Clístenes), o que promovia conflitos internos. Segundo Aristóteles, era um mundo dividido pela injustiça.

A aristocracia parecia apenas interessada em manter o poder, o que dificultava a prosperidade da cidade. Além do mais, a geografia grega parecia não contribuir com os atenienses, pelo aspecto irregular e montanhoso que possuía.

Ao sul da Grécia ficava o Egito e ao leste a Pérsia, ambos, nessa época, grandes impérios.

A Grécia era dividida em incontáveis pequenas nações, as cidades-estado. Cada uma independente e com sua própria cultura e história. Somente a língua e a crença nos deuses olímpicos eram comuns. A Atenas de Clístenes não era mais importante que qualquer outra cidade-estado.O que impressionava os gregos nesse período foram as suas histórias, contos e mitos. As cidades eram visitadas por centenas de cantadores de versos itinerantes que os recitava para quem os pagasse. Suas histórias inspiravam a todos. Dentre elas, as principais foram a “Ilíada” e a “Odisséia” que narram as façanhas dos heróis, figuras míticas que conquistaram o poder e a glória com o uso da força.

O Herói era tido como alguém que realizava grandes feitos. Quanto mais adversários eliminava e jovens deflorava, maior era o seu status heróico. Era excelente realizador. As suas imagens eram encontradas em toda arte grega, compondo o IDEAL daquele povo, isto é, o modelo que deveria ser seguido.

Em meados do séc. VI, um único homem assume o poder em Atenas. Seu nome é PSÍSTRATO (cunhado de Clistenes). Este tirano era um excelente político. Para conseguir aliados e resistir à aristocracia reduziu impostos e ofereceu empréstimo de graça aos gregos comuns, fomentando a vida agrária da cidade. Com isso os atenienses prosperaram com o cultivo de vinhas e oliveiras e passaram a exportar o óleo de oliva não somente para o mundo grego, mas para o Egito, Fenícia, Pérsia e Assíria.

A localização geográfica de Atenas favorecia o comércio. Com isso a cidade conheceu a prosperidade econômica.

Clístenes chegou à idade adulta sob o governo de Psístrato e sua cidade tinha se transformado, de um povoado modesto, em uma potência internacional.

Em 527 a.C., Psístrato morreu e seu filho HÍPIAS assumiu o poder. No início ele seguiu os passos do pai governando de forma justa Atenas, mas em 514 a.C. o seu comportamento mudou quando o seu irmão foi assassinado. Hípias determinou a execução dos acusados e de suas esposas, bem como o banimento da cidade de vários cidadãos.

Sentindo que o ambiente era propício, Clístenes organizou uma conspiração e depôs Hípias, banindo-o de Atenas por volta de 510 a.C.

Mas a compulsão heróica que moveu clístenses já não pertencia apenas à aristocracia, mas a todos os atenienses. Os jogos olímpicos, nessa época, admitiam que os gregos de qualquer origem competissem e obtivessem, mesmo que momentaneamente, a GLÓRIA, que era o propósito maior dessa cultura competitiva. Os jogos eram uma forma civilizada de satisfazer ao ideal do herói que subjazia no imaginário daquele povo.

E foi nesse ambiente instável, de conflito interno, que o aristocrata ISÁGORAS deu um passo sem precedentes. Pediu apoio aos espartanos, com quem tinha certa relação, para ascender ao poder em Atenas. Dessa forma ele deu um golpe, conquistou o poder e baniu Clístenes da cidade.

Mas, um acontecimento extraordinário aconteceu naquele momento em Atenas. No ano 508 a.C., como os heróis lendários, o povo ateniense tomou o destino em suas mãos e fez uma revolução contra Iságoras e seus aliados espartanos. Com uma fúria sem precedentes atacaram os seus adversários e os dominaram.

Pela primeira vez na história as pessoas se voltaram contra os seus governantes e tomaram o poder para si mesmas.

Sem liderança organizada, Clístenes foi chamado do exílio para organizar um governo. Ao retornar à Atenas ele percebeu que não existia ambiente para colocar um governo de aristocratas no poder, nem se declarar tirano, logo teve a sensibilidade de criar uma solução revolucionária para aquele momento político novo: O GOVERNO DEMOCRÁTICO.

Clístenes instituiu o voto simples para decidir as questões da cidade: uma pedra branca para o “sim”; e uma pedra preta para o “não”.

A partir daquele momento todas as questões passaram a ser decidida na Ágora (praça pública). Do preço do figo à declaração de guerra. Assim os gregos, mesmo os que não eram aristocratas, tornaram-se heróis na política.

Feliz ano novo! (ou "Uma andorinha não faz verão")

A felicidade do pobre parece
A grande ilusão do carnaval
A gente trabalha o ano inteiro
Por um momento de sonho
Pra fazer a fantasia
De rei, ou de pirata, ou jardineira
E tudo se acabar na quarta-feira.
Tristeza não tem fim
Felicidade sim...

(Felicidade – Tom Jobim e Vinícius de Moraes)

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Sempre que começa um novo ano os meios de comunicação nos abarrotam com pesquisas de todo tipo. A estatística é algo que nos fascina. A Ciência Moderna provou que é possível pensar a realidade em termos matemáticos. Por isso não resistimos a uma tabela ou gráfico que nos “revele” com precisão como as coisas acontecem.
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Numa dessas, li no jornal “O liberal”, de 03 de janeiro deste ano, o resultado de uma "pesquisa científica" que assegura ser a casa própria o sonho dos belenenses para 2010. Em segundo lugar vem o carro, depois o emprego, eletro eletrônico, viagem, moto, aprovação no vestibular, eletrodoméstico, etc. A tabela chegou ao cúmulo de classificar os sonhos por faixa etária, classe econômica e sexo. Procurei a minha faixa etária e os sonhos correspondentes e logo fiquei frustrado. Nenhuma opção de sonho correspondia a minha expectativa. Como sou belenense e possuo a faculdade de sonhar, supuz que me enquadrara na famosa “margem de segurança”. Ufa, ainda bem que existe o percentual de erro!

Mas, apesar de tudo, não duvido que os bens materiais, mencionados na reportagem, possam causar grande satisfação e até serem o sustentáculo daquilo que chamamos felicidade. O homem moderno é inexoravelmente individualista. A nossa felicidade não está condicionada – como na antiguidade - ao bem estar do conjunto da coletividade. Nos consideramos felizes, mesmo que a cidade "pegue fogo”, desde que as nossas necessidades individuais sejam satisfeitas. Não é sem razão que a casa, o carro, o emprego, etc. compõem o nosso imaginário. Isso conduziu a felicidade para o interior do sujeito. Ela se tornou um sentimento, algo subjetivo. Por isso, uns se julgam felizes com a aquisição de determinados bens; outros, de outros. A felicidade passou a corresponder aos sonhos e estes são produtos do sonhador.

Não podemos, pois, estranhar que as coisas coletivas não nos apeteçam e as ocorrências gregárias nos causem infortúnio. Falamos do público como o espaço da corrupção, multas, violência, “casamento civil, impostos sobre a renda e missa de sétimo dia”. Eis a causa de os modernos não se identificarem com a vida pública.

Para os gregos antigos a felicidade estava no espaço objetivo, na seara política. O cidadão só se considerava feliz se a cidade, como um todo, também o fosse. A eudaimonia (felicidade) era a excelência no sentido do bom funcionamento das coisas da cidade. Os projetos individuais deveriam estar sintonizados com os coletivos, sem os quais o BEM, enquanto prosperidade, jamais seria atingido.

Mas, não podemos transportar um conceito no tempo sem fazer algumas considerações de natureza histórica. A Grécia antiga era dividida em cidades-estado independentes e com características próprias. A língua e a religião (o culto aos deuses gregos) eram o elemento comum. Não havia segurança no sentido da “política externa”. A invasão, submissão e destruição de cidades inteiras era um evento corriqueiro. Atenas, por exemplo, se conflitou com Esparta, depois ficou sob o poder macedônico e, em seguida, se prostrou ante o império romano. É fácil supor que, diante de perigos externos iminentes, o espírito coletivo se fortalecesse. Os povos antigos não tinham uma tranqüilidade civil que os autorizasse a pensar a felicidade consubstanciada em outro bem que não fosse a segurança da cidade.

Com o surgimento do Estado Moderno, liberalismo político e a consolidação do capitalismo o cenário interno e externo dos Estados-Nação se modificou. Karl Marx, filósofo alemão do séc XIX, percebeu a existência de classes sociais antagônicas no interior de uma mesma sociedade. Os conflitos que, predominantemente, ocorriam nas relações exteriores foram transportados para o interior, porém escamoteados por um instrumento que foi “descoberto” naquele século, como problema filosófico: a linguagem. O discurso ideológico seria capaz de dissimular o antagonismo existente na sociedade, apresentando-a, aos olhos dos incautos, como UNA e HARMÔNICA, ocultando a reificação do homem e a expropriação do produto do seu trabalho.

Não existindo, na visão comum, inimigos externos e internos a serem combatidos, posto que o monopólio da força e da violência foi transferido para o Estado – a lei do Talião caiu em desuso – o homem moderno se voltou para o seu interior, buscando naquilo que lhe agrada internamente a felicidade. O individual, o pessoal e o privado passaram a ser o campo da realização humana. A felicidade foi transportada para o EU.

Não quero aqui dizer que possamos, hoje, resgatar integralmente o conceito de eudaimonia (felicidade) como os antigos o entendiam, mas concebê-la como algo estritamente subjetivo possui as suas conseqüências. Ao desprezarmos a visão totalizadora da sociedade, ignorando que o bem pessoal está concatenado ao bem coletivo, contribuímos, mesmo que omissivamente, para o caos na vida com os outros homens e com a natureza. Basta considerarmos fenômenos como a violência urbana e as alterações climáticas para percebermos que elas se recrudesceram a partir do momento em que abandonamos a visão holística do cosmos, submetendo a natureza aos interesses egoístas do homem moderno. A noção de felicidade, como prosperidade do grupo, foi abandonada pelo bem estar do indivíduo. Essa postura propiciou alterações no ambiente natural e social capaz de, cedo ou tarde, cobrar o seu preço, afinal, a criatura sempre se volta contra o criador.

Essa mudança social, política e econômica da sociedade provocou uma alteração psicológica no sujeito. Alguém pode estudar num colégio particular, possuir plano de saúde privado e morar num condomínio fechado, e não cultivar o menor ressentimento ao ver os seus concidadãos estudando em precárias escolas, morrendo à míngua na porta dos hospitais públicos, além de habitar em áreas sem saneamento e com elevados índices de criminalidade. Ignoramos solenemente o que disse o filósofo grego Aristóteles:“Uma andorinha não faz verão”. Agimos com a leniência dos que conseguem alguns benefícios pessoais e se esquecem que a vida não pode ser pensada e vivida fora do contexto maior da existência, sob pena de atentarmos contra o nosso próprio bem estar.

De qualquer forma, apesar de tudo, não vejo razão para ignorar os rituais da nossa sociedade “civilizada”, logo desejo a todos os leitores (inclusive anônimos) do blog do Wolgrand um FELIZ ANO NOVO! Que em 2011 possamos cuidar melhor da nossa verdadeira casa: a cidade (apesar dos esforços contrários do Duciomar e Ana Júlia Carepa).