quarta-feira, 30 de março de 2011

Nós merecemos Duciomar! (ou "A omissão é uma forma de corrupção")

Você deve notar que não tem mais tutu
E dizer que não está preocupado
Você deve lutar pela xepa da feira
E dizer que está recompensado
Você deve estampar sempre um ar de alegria
E dizer: tudo tem melhorado
Você deve rezar pelo bem do patrão
E esquecer que está desempregado

Você merece, você merece
Tudo vai bem, tudo legal
Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé
Se acabarem com o teu Carnaval?

Você deve aprender a baixar a cabeça
E dizer sempre: "Muito obrigado"
São palavras que ainda te deixam dizer
Por ser homem bem disciplinado
Deve pois só fazer pelo bem da Nação
Tudo aquilo que for ordenado
Pra ganhar um Fuscão no juízo final
E diploma de bem comportado

Você merece, você merece
Tudo vai bem, tudo legal
Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé
Se acabarem com o teu Carnaval?

(Comportamento Geral - Gonzaguinha)
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A cassação do prefeito de Belém Duciomar Costa me fez lembrar os artigos “Duciomar e a caverna de Platão” e “A culpa é sempre do consumidor”, publicados neste blog nos meses de novembro e agosto de 2008, respectivamente. O prefeito foi cassado por abuso do poder econômico, divulgação de obras e serviços inexistentes e outras ilegalidades praticadas durante a campanha eleitoral do ano passado, com o claro fito de iludir o eleitor e garantir a sua reeleição.

Nos artigos citados tentei sustentar a tese de que Duciomar, como um bom vendedor, somente ofereceu aquilo que os munícipes querem: a ilusão. Ele sabe como funciona o espírito humano, por isso só vende o que tem aceitação no mercado. Na política e na vida não importa o que as coisas são, mas o que parecem ser. O pensamento cria a realidade.

Por isso não devemos estranhar que Duciomar tenha se empenhado em nos enganar. Ao agir dessa forma ele apenas realizou as suas inclinações. Não podemos esperar que os bandidos cumpram as leis. O respeito às regras é característica dos bons cidadãos. Mas, apesar de todo empenho e competência do fazedor de ilusões, é difícil aceitar que ele tenha o poder de nos fazer crer que vivemos em Zurique ou Genebra. É claro que ele contou com o silêncio conivente de todos que conhecem os seus truques, mas, criminosamente, se omitiram.

Sartre, filósofo Frances do século passado, nos advertiu quanto a responsabilidade que possuímos ante os fatos da vida. Queiramos ou não, somos os únicos responsáveis por tudo que acontece, afinal estamos “CONDENADOS À LIBERDADE”. Não existe um deus ou força superior capaz de tecer o nosso destino. Somos responsáveis porque somos os únicos seres capazes de fazer escolhas racionais. Mesmo quando não decidimos, estamos fazendo escolhas: decidimos não escolher. A omissão não é indiferença, é opção. A nossa consciência não é um receptáculo destinado a acomodar certos conteúdos, mas é intencional. Somente o que não passa por ela não é objeto de valoração e escolha.

Se Sartre tem razão e, de uma ou outra forma, estamos fadados a tomar decisões, nos episódios de desmandos políticos em nossa cidade, agimos com total responsabilidade ao permitir, impunemente, que pessoas inescrupulosas administrem a coisa pública. Isso ocorre porque nos comportamos como a moça feia da música "A Banda" do compositor Chico Buarque: ficamos na janela esperando a banda passar e depois, imotivadamente, cremos que ela tocou para nós. Ou seja, agimos como meros expectadores dos fatos da vida. Não abrimos um caminho, com as nossas ações, capaz de modificar as coisas que abominamos. Limitamo-nos a comemorar ou lamentar as ações alheias (quando acontecem).

Por que, então, devemos estar felizes com a condenação do corrupto Duciomar se somos os únicos responsáveis pela sua ascensão ao poder? Se ele é tão nocivo ao serviço público, o que fizemos efetivamente para impedir que se elegesse para o cargo máximo do executivo municipal? Que sentido faz, agora, nos regozijarmos com uma sentença judicial - que pode ser revogada a qualquer momento - como se fosse a panacéia de um problema criado por nós mesmos? Desculpem-me os mais sensíveis, mas não estaríamos “gozando com o pau dos outros (e que ainda é broxa)”?

Ao demonstrarmos felicidade com a cassação de Duciomar evidenciamos a nossa própria incompetência e omissão, como se dependêssemos de um herói para nos socorrer e nos salvar do nefasto vilão. Creio que Sartre, como militante político que foi, diria: Não existe herói seus otários, se estão incomodados construam um novo caminho com as próprias mãos!

Pessoas como Duciomar somente existem por pura concessão nossa, porque "nós as merecemos". E se um dia a Justiça for justa, como os incautos acreditam, ela primeiro nos cassará, porque na ordem da corrupção nós somos os primeiros.

terça-feira, 29 de março de 2011

O Pensamento dogmático (ou "A forma ingênua de adquirir conhecimento")



O homem utiliza diversos tipos de narrativas (filosofia, ciência, arte, senso comum, mito, religião) para explicar os fenômenos que o cerca. São relatos ou histórias contadas, de alguém para alguém, com o propósito de transmitir uma ideia, um pensamento. Embora possamos considerar, originalmente, esses tipos de conhecimento como críticos, eles desempenham a função de CONHECIMENTO DOGMÁTICO quando aquele que os ouve ou os lê, os concebe como representação verdadeira das coisas, movidos unicamente pela crença em quem os anuncia.

Dependendo da conduta de quem recebe determinada informação, um saber será crítico ou dogmático. Se o receptor se dispuser a analisar a lógica interna da teoria, investigando-a e questionando-a, posicionar-se-a de forma crítica ante o que lhe é transmitido, pois tenderá a somente tomar como discurso "verdadeiro" aquilo que a sua análise indicar. Ao revés, se aceitar essa informação sem uma prévia análise racional, estará no âmbito da forma ingênua de conhecimento.

Para um conhecimento se tornar dogmático ele conta com um ingrediente fundamental: a CONFIANÇA (fé ou crença) do receptor da mensagem. Ele se realiza epistemologicamente porque o ouvinte da história confia na veracidade do relato, mas não o faz em razão das relações lógicas contidas no bojo do discurso, mas por acreditar que o contador da história é digno de credibilidade. Este funciona como uma AUTORIDADE ante aquele.

No pensamento dogmático a relação é unilateral, ou seja, é de “mão única”, pois não há debate, discussão, nem controvérsia. Isso promove a uniformidade do pensamento e da ação. Quando uma coletividade internaliza um discurso dessa maneira, responde de forma uníssona, pois o coletivismo é o seu inexorável resultado.

Mas quem é essa AUTORIDADE que tem o condão de nos fazer crer nas histórias que conta? Normalmente achamos que esse comportamento ante o ato de conhecer é próprio do homem antigo, que confiava nos relatos dos adivinhos, poetas e videntes; ou dos nossos contemporâneos interioranos, que dão incontido crédito aos contadores de fabulosas histórias. Podemos ainda imaginar que esse discurso é próprio da religião, onde DEUS assume a autoria da verdade revelada, justificando a crença ou fé naquilo que é dito. Mas essa AUTORIDADE também surge quando acreditamos em um pensamento pela fé que temos em quem o proclama, mesmo que o contador da história não seja a divindade, desde que aceitemos o discurso sem contestação. Neste momento, como os antigos e ribeirinhos, nos tornamos PASSIVOS do ponto de vista intelectual.

Mas como é possível que o homem contemporâneo, tecnológico e científico, se comporte ingenuamente ante o ato de conhecer?

Quando somos crianças, como aprendemos as coisas do mundo? Penso que podemos dizer que uma autoridade nos "revela" a verdade. Inicialmente somos orientados pelos pais, depois – aos 3 ou 4 anos – o professor assume essa tarefa. Em seguida (e concomitantemente) o repórter, a apresentadora de programa infantil (as Xuxas da vida), os atores, os políticos e os cientistas nos dizem o que e como pensar. Todas essas personagens (e muitas outras) nos ajudam a construir a nossa percepção da realidade. Acostumamo-nos tanto com o mundo relatado por elas que não ousamos submeter as crenças que adquirimos ao crivo da crítica.

Assim, mesmo sem pesquisar ou investigar os fundamentos de inúmeros fenômenos naturais e humanos, acreditamos com toda a força do nosso espírito nas histórias que nos contam. Cremos, amparados apenas na confiança no narrador, que nascemos porque um espermatozóide, por um motivo qualquer, fecundou um óvulo. Acreditamos que a terra gira em torno do sol, mesmo que jamais tenhamos observado o movimento dos astros celestes; Acreditamos que um corpo “cai” porque é atraído por outro corpo de maior massa, sem que tenhamos lido uma única linha de Newton; Que o chocolate é um alimento calórico, sem realizarmos qualquer pesquisa sobre a sua natureza energética; Que as mulheres são sensíveis, sem investigarmos o comportamento feminino nas diversas culturas e épocas, etc.

Não examinamos a validade desses e outros pensamentos que possuímos, apenas cremos que são verdadeiros da mesma forma que os gregos acreditavam na ILÍADA e ODISSÉIA; ou os nossos irmãos amazônicos, no Boto, Curupira, Mula sem Cabeça e Matinta Perera, ou seja, sem investigarmos pessoalmente a coerência interna desses discursos. Simplesmente os aceitamos por terem sido contados pelas "AUTORIDADES".

Assim, o dogma, o preconceito, o pensamento fixo se cristalizam em nosso intelecto, sem que os submetamos aos ditames de uma simples análise racional. Continuamos, ainda hoje, a adquirir (receber) o conhecimento de forma passiva como se não tivéssemos a capacidade de investigar, pesquisar e interrogar a natureza.

O conhecimento dogmático, portanto, do ponto de vista da relação que estabelecemos com as coisas da vida, continua determinando o que pensamos sobre os fenômenos naturais e humanos, fazendo-nos crer que somos detentores da VERDADE.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Duciomar e a caverna de Platão


Tentarei, neste artigo, defender a tese de que o prefeito de Belém, Duciomar Costa, diferentemente do que algumas pessoas dizem – talvez se baseando em alguns deslizes gramaticais praticados pelo nosso alcaide – possui sensibilidade e raciocínio acima da média, o que lhe permitiu a reeleição ao cargo majoritário nas últimas eleições municipais.

Não sei se Duciomar leu “A República” de Platão ou qualquer diálogo do filósofo grego, mas, de alguma forma, deve ter percebido que a sociedade funciona como o fundo da caverna imaginária, anunciada na carta VII daquela obra. Lá as pessoas não enxergam a luz exterior que alumia o verdadeiro conhecimento, pois estão presas por grilhões, que representam os preconceitos e opiniões construídas pelo hábito. Elas se encontram geração após geração nessa situação e nunca viram os seres como eles são em si mesmos, mas apenas as suas sombras projetadas no fundo da caverna. Por isso acreditam que elas (as sombras) são a única e verdadeira realidade. Se um prisioneiro fugir da caverna e, no mundo exterior, conhecer as coisas como de fato são (por meio da razão), ao retornar não conseguirá convencer os seus companheiros de que estiveram enganados sobre o que é a realidade, pois o terão como louco e o matarão.

Platão nos alerta por meio dessa alegoria que a natureza humana é resistente às mudanças e buscamos sempre o conforto das opiniões convergentes, que nos tranqüilizam ante um mundo em permanente transformação. Buscamos o que nos agrada em detrimento do que podemos, de fato, conhecer, por isso os prisioneiros não possuem o desejo de sair da caverna para contemplar a realidade. Convém à esmagadora maioria o conforto do conhecimento ilusório das sombras. Em outros termos, para Platão o verdadeiro conhecimento não pode se basear na sensibilidade, que apenas capta a ilusão, mas na razão que é a única faculdade capaz de permitir que conheçamos o que é melhor para nós: o VERDADEIRO BEM.
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Mas, a principal conclusão que se pode extrair desse mito não se refere à circunscrição do conhecimento verdadeiro à razão, mas a falta de interesse em buscá-lo. A grande maioria se satisfaz em ficar no ilusório conforto do fundo da caverna. Eis a razão que faz do filósofo um exceção, sobretudo do ponto de vista psicológico.
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Por isso Duciomar, conhecendo a natureza dos seres que habitam o fundo da caverna paroara, empenhou-se em manipular os seus concidadãos. Deu-lhes o alimento de que precisavam para sobreviver: as ilusões.

Desde o início de sua trajetória política, Duciomar trabalhou “na superfície” dos fenômenos, procurando minorar as suas conseqüências e assim dar a impressão de que estava, de fato, preocupado com bem da coletividade. Suas ações nunca ultrapassaram os limites de uma política assistencialista – com certa semelhança com as atuais “bolsas” do governo federal. Mas, como os prisioneiros do mundo sensível não conseguem compreender as causas dos males que lhes afetam, se satisfazem com quaisquer ações que aparentem resolvê-los e louvam os primeiros que as praticam. Daí ser muito comum ouvir, no fundo da caverna, a assertiva: “ESSE FOI O PRIMEIRO A FAZER ISSO OU AQUILO”, sem se darem conta se essas ações são eficazes para atacar as causas dos referidos problemas.

Sabedor que as paixões se sobressaem à razão no ambiente frio e úmido da caverna, Duciomar começou a sua inserção na seara pública fazendo o transporte – alternativo e ilegal - de centenas de pessoas esquecidas pelo Poder Público das mais longínquas localidades da área metropolitana da capital paraense. Com alguns ônibus velhos e muita desfaçatez alimentou a esperança e a dependência de inúmeras pessoas com o seu “projeto social”. Como Vereador e Deputado jamais exigiu do executivo municipal a solução definitiva para esse grave problema que afeta os mais desfavorecidos. Como prefeito também nada fez, nem mesmo advogou junto a Câmara Municipal pela regulamentação do transporte alternativo – do qual anteriormente participara -, ou outra providência eficaz para a melhoria do transporte coletivo de Belém, que é um dos mais caóticos das capitais brasileiras.

Ao assumir a Prefeitura de Belém, Duciomar teve um desempenho pífio nos três primeiros anos de gestão, justificados pela situação financeira difícil que recebeu do seu antecessor, mas nunca esclareceu amiúde tais dificuldades, nem quais providências adotou para responsabilizar os gestores que teriam malversado os recursos públicos. Preferiu lhes conceder o perdão de quem “não persegue ninguém”, pois sabia que os seus governados preferem administradores de “bom coração” que os que cumprem as leis. Leis são coisas abstratas, de difícil compreensão. Já o perdão é próprio de quem prioriza o sentimento sobre a razão.

Para assegurar que os seus concidadãos, pela situação que se encontravam, não ousariam querer conhecer a realidade exterior à caverna, Duciomar se aliou a um poderoso grupo de fabricação de ilusões, o qual, por qualquer vintém, é capaz de fazer qualquer jurisdicionado crer que as sombras são a única e verdadeira realidade.
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Com o domínio completo de como funciona a caverna e sem pressa, Duciomar pôs em prática o seu plano de permanência no poder. Como demonstração de sua rara inteligência pragmática, empenhou-se, no último ano de governo, em trabalhar literalmente na superfície, asfaltando tudo o que passava em sua frente. Somente não asfaltou a Baía do Guajará por absoluta impossibilidade técnica. Em seguida, iniciou obras em todos os flancos da cidade. Praças, ciclovias, canteiros centrais, orla da Bernardo Sayão, etc. Conseguiu convencer grande parte do seu séqüito de incautos cidadãos que a cidade estava um "canteiro de obras". O trabalho de prestidigitação foi tão bom – com o auxílio da fábrica de ilusões – que nem o caos na saúde, educação, transporte, segurança, etc, conseguiu impedir que Duciomar, com louvor, fosse mantido no cargo por mais 04 longas escuridões.

Hoje todas essas obras – e o Ministério Público também – estão paradas, como se as suas realizações não tivessem cronogramas e as condições de pagamento não tivessem sido objeto de um prévio contrato. Até parece que são obras caseiras que levamos aos “trancos e barrancos” ao sabor do nosso combalido bolso. Mas agora nada disso importa, pois o nosso ilustre prefeito tem a seu favor a aquiescência do povo que o reelegeu e "aprovou" a sua forma de governar.
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Por isso, não adianta chorar pelo leite derramado, nem acreditar que é empresa fácil sair do fundo da caverna, porque o gosto pela escuridão não foi criado por Platão nem Duciomar, mas é parte integrante da própria natureza humana, que somente a muito custo – e com o surgimento de uma linhagem de super-homens – poderemos sonhar com o gosto maciço pela luz do conhecimento. Enquanto isso, temos que reconhecer que Duciomar apenas deu ao povo o que ele mais deseja: A ILUSÃO DE QUE A REALIDADE ESTÁ MARAVILHOSA.

terça-feira, 22 de março de 2011

A alegoria da caverna em quadrinhos (ou "A televisão")

Vejam como a arte nos ajuda a pensar sobre as coisas do cotidiano. Tanto o Chico como o Maurício de Souza, com suas obras, nos adverte para a forma como nos relacionamos com aquilo que chamamos realidade.

Com a música A TELEVISÃO (1967), Chico discute essa questão filosófica fundamental (o que é a realidade). Ela seria a perspectiva do “homem da Rua”, que, mesmo sem companhia, prefere contemplar a natureza e não volta para casa; ou seria a do “nego conformado”, que deixa a lua de lado e vai, como a maioria da espécie humana, “ligar os botões”?

No mesmo azimute, mas com outra linguagem artística, Maurício de Souza conta a famosa “Alegoria da Caverna” de Platão de forma inovadora. Ele propõe uma questão que subjaz ao famoso mito: Somos capazes de sair, de fato, da caverna, isto é, das sombras da ilusão para as luzes do conhecimento; ou apenas saímos de uma caverna e, imediatamente, entramos em outra?

Seja como for, eis bons exemplos de manifestações artísticas que nos ajudam a refletir filosoficamente.
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O homem da rua
Fica só por teimosia
Não encontra companhia
Mas prá casa não vai não
Em casa a roda já mudou
Que a moda muda
A roda é triste
A roda é muda
Em volta lá da televisão...

No céu a lua
Surge grande e muito prosa
Dá uma volta graciosa
Pra chamar as atenções
O homem da rua
Que da lua está distante
Por ser nego bem falante
Fala só com seus botões...

O homem da rua
Com seu tamborim calado
Já pode esperar sentado
Sua escola não vem não
A sua gente
Está aprendendo humildemente
Um batuque diferente
Que vem lá da televisão...

No céu a lua
Que não estava no programa
Cheia e nua, chega e chama
Prá mostrar evoluções
O homem da rua
Não percebe o seu chamego
E por falta doutro nego
Samba só com seus botões...

Os namorados
Já dispensam seu namoro
Quem quer riso
Quem quer choro
Não faz mais esforço não
E a própria vida
Ainda vai sentar sentida
Vendo a vida mais vivida
Que vem lá da televisão...

O homem da rua
Por ser nego conformado
Deixa a lua ali de lado
E vai ligar os seus botões
No céu a lua
Encabulada e já minguando
Numa nuvem se ocultando
Vai de volta pros sertões...

(A televisão - Chico Buarque)







O pensamento ético de Aristóteles (ou “A virtude está no meio”)


Para compreendermos o pensamento ético de Aristóteles devemos começar pelos seus estudos em Psicologia. Segundo ele, todos os seres vivos possuem um princípio que lhes dá a vida, que é a alma, mas cujas manifestações diferem segundo as funções que lhes são próprias. Os vegetais possuiriam somente uma alma VEGETATIVA, compatível com as faculdades de reprodução e crescimento; os animais, uma alma vegetativa e SENSITIVA, pois além do crescimento e reprodução seriam dotados de percepção do mundo e capacidade de movimento; o homem, além das almas citadas anteriormente, seria dotado da alma INTELECTIVA ou racional, pois seria possuidor, dentre outras coisas, da faculdade de raciocinar.

Dito isso, o filósofo entende que cada AÇÃO que praticamos visa um fim e esse fim é um bem para nós, na medida em que nos parece bom e desejável. Na cadeia sucessiva de fins estaria o fim último ou bem maior que todos nós aspiramos: a felicidade (eudaimonia), porque ela não seria um meio para nenhum outro fim, se realizando em si mesma, enquanto bem supremo.

Nesse contexto, seríamos felizes quando realizássemos bem a nossa missão enquanto homens, agindo segundo a nossa virtude, que é o pleno exercício da atividade racional, pois, dessa forma, estaríamos nos aperfeiçoando enquanto homens, nos termos da nossa constituição psicológica (aquilo que nos diferencia de todas as outras coisas). Em outras palavras, seria colocar em ATO aquilo que está em potência em nós. Por isso, segundo Aristóteles, não deveríamos nos contentar com a nossa condição de seres viventes, nem capazes de uma vida sensitiva, visto que tais faculdades também são comuns às plantas e animais. Portanto, somente a atividade da razão poderia nos tornar virtuosos e felizes.

É sempre bom lembrar que Aristóteles não condena os prazeres do corpo (apetites ou desejos), pois entende que eles participam da nossa alma (sensitiva), nos impulsionado ao que causa prazer e nos afastando do que causa dor. Mas os subordina à alma intelectiva que é própria e exclusiva do seres humanos.

Por isso, agir virtuosamente é agir segundo aquilo que nos é próprio, isto é, segundo a razão. Mas essa ação não se realiza eventualmente, mas reiteradamente, como obra de uma vida inteira, ou seja, enquanto HÁBITO.

Para que a ação virtuosa seja possível, considerando que não somos pura razão, mas também somos inclinados a buscar o prazer e fugir da dor (páthos) é necessário que permanentemente DELIBEREMOS com vistas ao BEM (a felicidade). Logo, a tarefa da ética é educar o nosso apetite/desejo para que evitemos o vício e alcancemos a virtude. A virtude é a medida entre os extremos (vícios), a moderação entre dois extremos, o JUSTO MEIO (nem excesso nem falta). É a ação de impor limites ao que, por si mesmo, não conhece limites. É pesar, ponderar, equilibrar e deliberar.

A ação virtuosa não é uma inclinação ou aptidão (como julgara Platão), mas um permanente deliberar, um HÁBITO ADQUIRIDO, uma disposição permanente de querer o BEM. A tarefa da ética é a de nos orientar para aquisição desse hábito: “O exercício da vontade sob a orientação da razão para deliberar e escolher ações que permitam satisfazer apetites e desejos sem cair num dos extremos”. Segundo o filósofo, somente nos tornamos bons, praticando atos bons.

É sempre bom lembrar que, para o filósofo, os apetites e desejos não são bons ou maus, desde que se submetam aos ditames da razão. Por isso, não nascemos bons ou maus, mas nos tornamos pela ação. E se nos tornamos (ou não) virtuosos pela ação é porque podemos escolher dentre uma ou outra possibilidade de conduta. Aristóteles inova ao reconhecer que uma coisa é conhecer o bem e outra é fazer o bem (veja como ele se afasta do intelectualismo socrático). Daí a importância do ato de escolha (ou deliberação) para a constituição do ato moral.

Lembremos que Aristóteles se difere de Sócrates e Platão justamente no que atine aos atos voluntários ou involuntários. Para estes, os desejos e apetites são involuntários, porque irracionais, passionais e frutos da ignorância do homem. Para Aristóteles, as paixões, enquanto integrantes da alma humana, compõem o rol dos atos voluntários, posto que são frutos daquilo que a nossa natureza nos leva natural e conscientemente a realizar. Para o estagirita, somente praticaríamos atos “involuntários” sob coação ou constrangimento.

Portanto um ato voluntário é ético quando ele depende de nós no contexto em que é praticado, ou seja, quando é fruto da nossa deliberação (liberdade) consciente, segundo o JUSTO MEIO, com vistas ao BEM, isto é, a FELICIDADE. Aristóteles reconhece a existência do sujeito autônomo, enquanto aquele que é capaz de RESPONDER pelos seus atos.

quinta-feira, 10 de março de 2011

O pensamento ético de Platão (ou "As paixões sob a tutela da razão")


Platão nasceu em Atenas, em 427 a.C., dois anos depois da morte de Péricles. Viveu a sua idade madura durante o declínio do império ateniense, após a derrota para Esparta na guerra do Peloponeso. Assistiu a ascensão ao poder da “TIRANIA DOS TRINTA”, espécie de governo oligárquico que sucedeu a democracia ateniense.

Nesse ambiente politicamente conturbado, o filósofo construiu a sua “cidade perfeita”, utopia prevista em sua principal obra: “A República”, como instrumento capaz de orientar uma sociedade estável que tende à perfeição. Nesse sentido, Platão propõe a substituição da plutocracia, que reinava na Atenas imperial, por uma sociedade governada pelos melhores homens do seu tempo, em termos de conhecimento e sabedoria.

O raciocínio ético e político do filósofo grego estavam amparados numa psicologia e teoria do conhecimento (epistemologia). Ele concebia a alma humana dividida em três partes (racional, irascível e concupiscente), sem harmonia equitativa entre elas. Cada uma preponderava sobre as outras, de acordo com a função que cada pessoa teria no grupo social a que deveria pertencer, dentro da estrutura de sua cidade perfeita - justa. Partindo dessa premissa, aqueles que fizessem bom uso do intelecto integrariam a classe responsável em governar a cidade, os guardiões, pois seriam capazes de se impor aos apetites e à coragem (do âmbito do sensível) - que são, respectivamente, as características das classes que deveriam ser comandadas: os artesãos e soldados -, praticando as ações necessárias ao bom funcionamento da cidade.

Podemos dizer que a utopia política platônica contempla o que atualmente chamamos de MERITOCRACIA, isto é, o governo dos mais aptos. Este entendimento se alinha perfeitamente com a noção de justiça que o filósofo privilegia em sua obra e que possui como princípio filosófico a sentença: "DEVEMOS DAR A CADA PESSOA O QUE LHE É DEVIDO, SEGUNDO A SUA NATUREZA".

Partindo de sua psicologia e teoria política, Platão se afastou da posição intelectualista de Sócrates ao admitir a existência do AGENTE ACRÁTICO (aquele que é fraco em sua vontade de seguir a orientação da razão), e admitiu que alguém pode conhecer o mal, decorrente de determinada escolha, e deliberadamente praticá-lo, por ter sido movido pelos desejos não racionais – paixões – em detrimento da vontade racional. Assim, como o corpo político deveria ser governado pelo mais apto do ponto de vista das habilidades intelectuais, o indivíduo também deveria ser comandado pela parte racional da alma.

Na hipótese de alguém que adquire um objeto que está além da sua capacidade financeira, Platão diria que essa pessoa agiu dessa forma porque a sua vontade racional foi fraca. Não teve fibra. Agiu sem controle porque sua razão foi nublada pela paixão, por forças do desejo irracional.

É nesse contexto que o filósofo concebe um governo dos melhores e propõe uma reforma ampla na sociedade de sua época. Além da rigorosa preparação dos guardiões, dos quais seria escolhido o “rei filósofo” (aquele que governaria a cidade), também sugere a limitação da propriedade e o desligamento dos valores materiais, necessários ao estabelecimento de uma sociedade mais igualitária. Por essa razão os dirigentes teriam que ser alguém cujo ideal não estivesse preso aos apelos materiais (do corpo).

Platão não desprezava o princípio da ética intelectualista de Sócrates, segundo o qual bastaria saber o que é a bondade para ser bom, porém o apropriou com a diferença de que acreditava ser capaz o conhecimento dos conceitos. Seu mestre apenas se satisfazia em destruí-los.

Diante do conceito "bondade", por exemplo, considerava-o como a ideia geral do que é bom, ou seja, aquele pensamento do qual todos os atos tidos como bons participam. Essa compreensão, como vimos, não seria para qualquer um, mas limitada aos indivíduos capazes de alcançar a luz do conhecimento, como narra na famosa “Alegoria da caverna”, constante na carta VII da “República”. Por isso o governante teria que ser filósofo, por ser o único capaz de alcançar o verdadeiro conhecimento dos conceitos, logo o único capaz de efetivá-los na cidade.

Mas Platão reconhece a dificuldade que o homem teria de praticar boas ações sem a necessidade de coerções externas. Essa disjuntiva férrea o filósofo trata na "história de Gyges", alegoria que também integra "A República". Gyges é um bom e justo pastor até encontrar um anel que o torna invisível. A partir desse momento, ao perceber não estar sujeito aos julgamentos alheios, pratica toda sorte de atos reprováveis. Esta história suscita a emblemática questão: Somos capazes de agir virtuosamente, mesmo se estivermos protegidos pelo manto do anonimato?

A resposta do filósofo para essa questão é SIM. Somos capazes de praticar atos bons e justos sem coerção externa, desde que a parte racional da alma se imponha e nos permita a compreensão das ações que DEVEMOS praticar. A "imposição" decorre da própria razão que nos permite, pela compreensão contextual (universal) do fenômeno em exame, reconhecer a necessidade de agir para além dos valores individuais. Por isso o “Rei filósofo” deve ser o governante, como o indivíduo capaz de AGIR por necessidade a partir da compreensão universal do que é BOM. Somente quem alcança esse grau de compreensão estaria apto para conduzir o corpo social para o BEM, enquanto prosperidade de todos com vistas à felicidade.

Este é o componente objetivo da ação moral e política em Platão. O indivíduo deve comandar pela razão e necessidade, jamais para agradar. Somente assim a sua conduta pública ou privada (que para os gregos antigos não se dissociavam) estará, de fato, visando o que é melhor para todos. Em outras palavras, o "melhor" é sempre um valor coletivo, diferentemente das ações morais ou políticas hodiernas que visam unicamente a satisfação de interesses individuais ou particulares.

Eis que hoje, mesmo sem sabermos, somos socráticos ou platônicos ao fazermos julgamentos morais, porque, de alguma forma, ora acreditamos na existência do agente acrático, ora o ignoramos.