quinta-feira, 23 de junho de 2011

O malandro - Chico Buaque (Ou "Condenado pela situação")

Com a música "O malandro" Chico Buarque de Holanda, com maestria, nos mostra o que é a atividade (investigação) filosófica. Para compreendermos determinado fenômeno é preciso “navegar” para além dele próprio e pesquisar as causas “invisíveis” que direta e decisivamente o afetam e o determinam. Platão já nos alertara que aquilo que parece ser mais abstrato e distante de nossa percepção sensível, são as coisas sobre as quais, de fato, podemos ter certeza.

Todas as coisas existem num contexto que as formam e conformam. Pensá-las é apreendê-las no ambiente em que estão inseridas, de outra forma o verdadeiro sentido de suas existências se esvaem. Por isso o malandro da canção não é autuado, julgado e condenado pelo simples gole de cachaça que consumiu sem o devido pagamento, mas pela “lógica capitalista” que faz com que todos que dela participam se sintam compelidos a cobrar das outras pessoas determinadas condutas.

(nota do autor do blog)
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O Malandro (Chico buarque)

http://www.youtube.com/watch?v=_5iGWfguyY8

O malandro/Na dureza
Senta à mesa/Do café
Bebe um gole/De cachaça
Acha graça/E dá no pé

O garçom/No prejuízo
Sem sorriso/Sem freguês
De passagem/Pela caixa
Dá uma baixa/No português

O galego/Acha estranho
Que o seu ganho/Tá um horror
Pega o lápis/Soma os canos
Passa os danos/Pro distribuidor

Mas o frete/Vê que ao todo
Há engodo/Nos papéis
E pra cima/Do alambique
Dá um trambique/De cem mil réis

O usineiro/Nessa luta
Grita(ponte que partiu)
Não é idiota/Trunca a nota
Lesa o Banco/Do Brasil

Nosso banco/Tá cotado
No mercado/Exterior
Então taxa/A cachaça
A um preço/Assutador

Mas os ianques/Com seus tanques
Têm bem mais o/Que fazer
E proíbem/Os soldados
Aliados/De beber

A cachaça/Tá parada
Rejeitada/No barril
O alambique/Tem chilique
Contra o Banco/Do Brasil

O usineiro/Faz barulho
Com orgulho/De produtor
Mas a sua/Raiva cega
Descarrega/No carregador

Este chega/Pro galego
Nega arrego/Cobra mais
A cachaça/Tá de graça
Mas o frete/Como é que faz?

O galego/Tá apertado
Pro seu lado/Não tá bom
Então deixa/Congelada
A mesada/Do garçom

O garçom vê/Um malandro
Sai gritando/Pega ladrão
E o malandro/Autuado
É julgado e condenado culpado
Pela situação

sábado, 18 de junho de 2011

Chico Buarque: 67 anos de poesia (Ou "O chico é eterno")



A Arte é um tipo de conhecimento que transita no terreno arenoso das paixões, da sensibilidade, da intuição, do aspecto mais fluídico do Ser. A Filosofia e a Ciência, diferentemente, perquirem os aspectos estáveis da realidade, utilizando um discurso lógico e rigoroso, quase dogmático, movidas pela crença na posse de um conhecimento objetivo (universal e necessário). Mas a Arte conta com uma linguagem que não se submete aos cânones convencionais de forma e conteúdo, por isso o artista, mesmo quando se contradiz, é capaz dizer: ali está o real, sem qualquer necessidade de demonstração.

O poeta e escritor Francisco Buarque de Holanda é, por excelência, a personificação do artista no sentido estrito do termo. É capaz de sintetizar numa frase aquilo que filósofos e cientistas não conseguem em tratados inteiros. Chico é irreverente, ousado, rigorosamente desordeiro. Sabe que a ordem é produto do intelecto humano e a vida – o seu verdadeiro objeto – não tem regras preconcebidas, e que, para capturá-la, é preciso lançar a rede ao desconhecido sem saber o que nela virá.

Chico quando olha para a sociedade sempre a inverte e subverte. Fala do guri e do pivete de forma não institucionalizada. O menor infrator não é somente um delinqüente, mas alguém que vive a vida em suas limitações, fraquezas e ilusões. A meretriz, filha do desprezo, ironicamente precisa conter o asco de dormir com um nobre forasteiro para redimir uma cidade inteira. O que é o justo e o correto? O poeta não diz, apenas nos atormenta com suas insinuações.

Quando fala do sentimento feminino, não o faz buscando definições universais com descrições exatas e idealizadas, mas retrata a mulher individual, imperfeita, que sofre com a submissão; que se desespera e chora baixinho atrás da porta ao ser abandonada. Que espera o marido no portão todo dia, fazendo tudo igual. Fala também de uma mulher forte, que leva o sorriso da gente e é capaz de encontrar outro “mais e melhor”, como quem diz: “não se mirem no exemplo das mulheres de Atenas”.

Chico sabe que não é preciso ser filósofo para ver o que está ao redor dos acontecimentos. Quando se vai contra a correnteza, a roda viva (o sistema) nos leva “para lá”. Que o malandro - na dureza - não é julgado, condenado e culpado pelo gole de cachaça que indevidamente consumiu, mas pela situação, pelo contexto, que, como um turbilhão, faz o que quer com o nosso destino.

Mas o poeta, ao mesmo tempo, ri e brinca com o próprio destino, culpando-o ironicamente das nossas imperfeições e desditas, das nossas condutas transgressoras, sugerindo que não há um anjo malvado ou um chato de um querubim capaz de nos fazer bons ou ruins; nem mesmo existe um Deus gozador que se compraz em nos colocar em situações embaraçosas, porque a vida é responsabilidade nossa, enquanto pudermos sorrir, enquanto pudermos cantar.

Chico, mais uma vez, desbanaliza o cotidiano nos dizendo que não é na Lapa que está o verdadeiro malandro, mas em algum lugar do serviço público, com gravata, mulher, tralha e tudo. E que apesar dele, amanhã há de ser outro dia. E se esse dia chegar, não será obra do acaso, mas daqueles que nada tem a perder para ousarem formar um verdadeiro cordão contra os poderosos. Porque a vida tem sempre saída, a vida tem sempre razão.

As palavras são a matéria prima do poeta. Falando sério ou só por ouvir dizer, ele sabe quão difícil é acordar calado. Que não há coisa mais nobre no mundo que expressar o pensamento. Não há meio termo possível: ou a voz é nossa ou de mais ninguém. Chico sabe que as palavras tem o condão de criar a realidade, como o artista cria as metáforas. Cala-se, dizendo. Diz em silêncio, “porque a dor não passa”. Porque a condição humana é simples e cruel.

Quando ele fala de amor, parece querer nos confundir. Desdenha do grande amor mudando de calçada; mas, de repente, sente o peito arder de desejo ao ver Cecília passar. Chico não fala de um amor atemporal – pretensão dos filósofos – mas de um sentimento mundano que nos faz contar segredos lindos e indecentes; ou que nos deixa paralisados ao ver a amada saindo do mar. O poeta denuncia a instabilidade do espírito humano, "que ri e chora, que chora e ri".

O Chico é isso e muito mais, porque com a sua arte nos faz duvidar das crenças do dia a dia, nos provoca, nos deixa inseguro e depois nos conforta com uma linda canção de amor. Porque a verdade não é o seu tema. O seu objeto é, simplesmente, a vida.

Parabéns ao Francisco, porque o Chico é eterno!

terça-feira, 14 de junho de 2011

Nietzsche e o sexo oral (Ou "Como confortar um espírito puro")


Ressentimento (Walber Wolgrand)

Quando uma mulher diz que os homens,
Por se comportarem de certa maneira, “não prestam”,
Se referindo à infidelidade conjugal ou afetiva,
O faz como expressão da flagrante tentativa de esconder
Atrás do fantasma moral as suas frustrações,
Recalques, submissões, limitações diversas, etc.,
Sentindo-se, ao revés, diferente desses seres
Que, por sua natureza, são "condenáveis" e "dignos de piedade".
Denegrimos o outro para nos sentir superiores
Ou para esconder as nossas impossibilidades.
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Ganhou publicidade incomum o caso da adolescente que praticou sexo oral no interior do banheiro de uma escola pública estadual. O vídeo gravado bateu recordes de acesso na internet. A mídia marajoara não perdeu a viagem: explorou o assunto como pôde (ver matéria de capa do jornal “O Liberal” de 01 de novembro de 2009).

Esse fato me fez lembrar um acontecimento que se deu nos últimos anos da década de setenta. A “meia idade” já me permite fazer certas analogias. Refiro-me ao filme baseado na obra de Nelson Rodrigues “bonitinha, mas ordinária”. Tinha 11 ou 12 anos quando presenciei a conversa entre a minha mãe e minha avó. Elas foram assistir ao filme protagonizado por Lucélia Santos. A atriz acabara de fazer enorme sucesso como a personagem principal da novela “escrava Isaura”. Foram ver a personagem e voltaram falando “cobras e lagartos” da atriz. Só me restou a imaginação das “cenas quentes” que me foram injustamente sonegadas, afinal, o título do filme e as metáforas moralistas das minhas queridas ascendentes não me permitiram pensar em outra coisa: sexo.

Naquela época peitinhos, bundas e “xoxotas” não estavam explicitamente à mostra na mídia e o acesso aos filmes “proibidos” não era fácil. Ver parte das nádegas de uma mulher podia levar qualquer jovem ao clímax. O casamento ainda era o meio mais eficaz para legitimar (e viabilizar) a prática sexual entre os jovens, e o uso de anticonceptivos ainda era tabu.

As mulheres eram, sem qualquer pudor, submissas na vida privada e não ocupavam cargos de relevância na pública. Dentre as virtudes femininas estava a habilidade nas tarefas domésticas. Sonhavam com o príncipe capaz de lhes "salvar" das amarras paternas.

Em apenas três décadas houve uma revolução moral, política, profissional e epistemológica da nossa sociedade. No campo moral, a mulher saiu do casulo e passou a ser dona do próprio nariz. Muitas, inspiradas no exemplo da "rainha dos baixinhos", fizeram “produção independente” e o patriarcado ficou decrépito e pereceu; no político, a Constituição "Cidadã" assegurou direitos iguais para homens e mulheres; no profissional, as mulheres ocuparam espaços no mercado de trabalho que eram historicamente masculinos; no epistemológico, as novas tecnologias (celulares, computadores, etc.) modificaram significativamente o comportamento humano com a difusão quase instantânea das informações.

A mídia convencional também se modificou. Acompanhando a transformação política e moral, as cenas de nudez e sexo se tornaram corriqueiras na televisão e no cinema, estimulando um culto ao corpo desenfreado (não é sem razão que, hoje, as academias estão lotadas). Consequentemente as relações sexuais passaram a ocorrer cada vez mais precocemente e sem a necessidade de um relacionamento estável do casal. O consentimento foi tácito, mas inevitável. O comportamento humano inexoravelmente se modificou. À liberdade política sucedeu à sexual. No novo Estado brasileiro a proibição se tornou exceção, como que parafraseando o grande poeta Caetano Veloso: “É proibido proibir!”

O corpo (em especial o bunda) também se libertou. Grethem, Rita Cadilac, Carla Peres, Xuxa, Angélica e outras construíram, com movimentos sensuais, o imaginário popular na dança (inclusive infantil), sem precedentes na história nacional. Os ritmos musicais - forró, lambada, axé, brega, funk, etc. - também contribuíram para a popularização dos ousados movimentos. Tudo em perfeita sintonia com as letras das músicas, numa combinação de palavras e expressões inimagináveis em um passado relativamente recente.

No início da década de oitenta a palavra "pentelho" foi proibida na música "Ciranda da bailarina", do compositor Chico Buarque. Em menos de uma década os "Mamonas Assassinas" fizeram enorme sucesso utilizando em suas "músicas" expressões chulas, obscenas e fora de qualquer contexto lógico: "sabão crá-crá, sabão crá-crá, não deixe os cabelos do saco enrolar".

Num ritmo estonteante, pensamento e comportamento sofreram uma metamorfose radical. As mudanças somente não foram maiores porque as gerações atuais foram direta ou indiretamente educadas por aquelas que “beberam da fonte” dos valores de outrora, os quais, uma vez internalizados, não se dissipam pelos poros com facilidade. O espírito foi contaminado por uma praga deletéria. Eis o grande paradoxo da incontrolável e frenética transformação da nossa sociedade. As mutações estéticas e morais não foram acompanhadas pelo universo emocional do sujeito, ou seja, psicologicamente continuamos estacionados em algum lugar do passado. Pensamos e apreendemos o mundo de uma forma e o desejamos de outra. A experiência do doutor frankstein criou um ser híbrido e em dissonância consigo mesmo: com algumas faculdades Hipertrofiadas e outras pouco desenvolvidas.

A "educação" dos valores continuou a mesma. Alguns se modificaram, mas a forma de pensá-los e transmiti-los não se alterou. Nietzsche, filósofo alemão do século XIX, nos ensina que esse descompasso da ação (ou da vida) com o pensamento é característica da cultura ocidental. É nesse sentido que o homem moderno é hipócrita. Quer se emancipar e ao mesmo tempo quer se manter sob a proteção de elementos absolutos. Apesar das inegáveis transformações da sociedade, continuamos dependendo desses referenciais justificadores da vida. A transformação ocorre no exterior, mas o interior do sujeito permanece o mesmo.

Mas o que mantém essa imutabilidade psicológica? Nietzsche diria que ela é fruto de uma educação tradicional e essencialista, baseada na crença em valores supremos, por isso verdadeiros e imutáveis. Nesse contexto a liberdade é uma ilusão. Por isso os conceitos (amor, casamento, felicidade, honestidade, etc.) que utilizamos são os mesmo dos nossos antepassados. Os artifícios educacionais os mantém vivos em nosso pensamento.

Nietzsche diz que criamos esses ideais (como verdades) porque não nos sentimos fortes o suficiente para enfrentar a vida em sua nudez objetiva, limitada e carente de significado. Logo, buscamos uma justificação metafísica para ela. Recorremos à religião, à ética, à ciência, etc. Mas essa “estratégia” de superação das dores do dia a dia tem o seu preço. Ao negarmos a experiência do tempo e da morte, negamos também o CORPO, o AGORA, o CONFLITO e a TRANSFORMAÇÃO. Vivemos em um mundo em que a vida, no sentido da sensibilidade, é desprezada. O ocidente cultuou Apolo e desprezou Dionísio.

Para o filósofo, essa forma de o homem se relacionar com os fenômenos existenciais instituiu um tipo psicológico denominado “doente”. Este sujeito utiliza a palavra – os adjetivos morais – para causar no espírito dos "sadios" o sentimento de pecado, erro e transgressão. E quando estes introjetam esses sentimentos, eles já estão na seara dos "doentes" e não mais viverão a vida afirmativamente no fluxo dos sentidos, pois passaram a priorizar os valores absolutos como justificadores das suas existências. Essa situação fez com que o homem criasse uma imagem de si idealizada (superior a que pode ser vivida), para amenizar as suas desditas. Essa dependência psicológica somente é superada pelo "super homem" (ou "além do homem"), que é o ser - imaginado por Nietzsche - capaz de viver sem esses consolos metafísicos.

Utilizando essas premissas, podemos dizer que os jovens estudantes envolvidos no episódio foram vítima de uma sociedade hipócrita (e doente), que vive uma cultura do corpo e dos sentidos, mas julga e condena a partir de valores absolutos e inalienáveis. Uma sociedade que, em pleno séc. XXI, vê o corpo se libertar, mas ainda o reprime como sede do pecado. Que fecha os olhos para as transformações sociais, tratando os adolescentes idealmente como seres assexuados, impondo-lhes uma "verdade" anacrônica e castradora. A vida em suas peculiaridades foi desprezada pelo discurso universalizador, relegando a segundo plano o inestimável valor das vivências e experiências próprias.

Apesar da inegável mudança da sociedade, estamos ainda ligados aos cânones que nos são ensinados desde os primeiros anos de vida, consubstanciando-se em leis morais e jurídicas (como o Estatuto da Criança e do Adolescente), criando a “superestrutura” do meio onde vivemos. Somos educados para esses valores desde os verdes anos e, desde então, passamos a viver em função desses ideais, ignorando por completo a possibilidade de nos "construirmos" a partir de novas experiências. A verdade está fora de nós e ela é cognoscível. A educação nos torna “BONS”, no sentido moral; e “CIDADÃOS”, no jurídico. Fugir desse modelo é sinônimo de desajuste, o que justifica o uso de todos os mecanismos de contenção da conduta. Essa forma de administrar os problemas humanos possui o seu fundamento na necessidade que temos de nos sentir amparados por um referencial qualquer que nos conforte das adversidades para as quais não fomos preparados para lidar.

Nesse contexto, é uma estupidez criticar a ação dos adolescentes. Eles apenas se expressaram da maneira mais intrínseca à nossa natureza: por meio das pulsões sexuais. Mas os condenamos porque estamos aferrados ao pensamento de como a conduta humana deve ocorrer. Assim fomos ensinados e aprendemos a interpretar o mundo a partir de um "modelo" que funciona como sinônimo de normalidade. Este fato, antes de mais nada, deveria ser um mote para debates, discussões e análises no âmbito da comunidade acadêmica (e fora dela) com o propósito de construir uma forma própria e consciente de tratar a questão do sexo na adolescência, justificando o caráter pedagógico, acadêmico e crítico da escola. Ao revés, Prevaleceu o silêncio tenebroso e implacável, característico das sociedades autoritárias onde a verdade - por ser verdade – não permite o debate de idéias.

Em suma, os adolescentes foram sumariamente condenados por uma prática comum na sociedade brasileira hodierna, mas que o discurso "competente" ignora. Transferi-los de estabelecimento educacional apenas ratificará esse absurdo, pois, sem qualquer análise contextual, sedimentará o entendimento de que os alunos cometeram uma incomensurável transgressão. Fixará ainda a esdrúxula idéia de que a vida é um erro e que apenas transferimos (junto com os alunos) a responsabilidade de decidir o caminho que devemos seguir ante essa coisa mágica e desconhecida que é a existência.

E ainda temos de ouvir o discurso dos “especialistas" despreparados: "A escola está se degenerando!" A estes Nietzsche, se pudesse, diria: A escola apenas reproduz os valores supremos. O homem se degenerou quando “engoliu” a idéia de que existe uma verdade e que esta deve estar acima do próprio homem, isto é, acima da vida!

Dois sonetos de amor

No primeiro soneto temos o eu lírico feminino caracterizado pelo esforço em afastar o que atormenta e inquieta - mesmo que seja prazeroso -, posto que a fuga da dor é considerado um valor maior que a busca do prazer (visão invertida da realidade, promovida por questões morais). No segundo, temos a posição - contradita - do poeta.


I

Não quero mais o teu beijo
Que tanto prazer me trouxe
Que é úmido, inquieto e doce,
Mas mirrou o leite do meu seio.

É verdade que ainda te desejo
E a tua presença arde em meu ser,
Mas não quero o que dói e dá prazer;
Que ora é inteiro, ora é meio.

Hoje, por uma razão qualquer,
Só quero o que convém e apraz
Meu espírito de mulher,

Que cansado de sofrer
Prefere a calma de "amar" em paz
Que o torpor de tanto prazer.


II


Pensas que a dor
Não pode habitar um ser
Que experimenta o amor
E a delícia do prazer.

Por isso, ao revés,
Buscas a eterna felicidade
Alhures, sem saber que és
A diversa realidade,

Porém, ao "afastar" a dor,
Que evitas e que te faz sofrer,
Esqueces-te que a inquietude

Do ser é a sua virtude.
E ao negares a dor do prazer
Demites também o amor.

A pedagogia do medo (Ou "Para quem a liberdade é um valor?)

"Com que inocência demito-me de ser
Eu que antes era e nem sabia
Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
Ser pensante, sentinte e solitário
Com outros seres diversos e conscientes
De sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio
Ora vulgar, ora bizarro.
Em língua nacional ou qualquer língua
(Qualquer principalmente.)
E nisto me comprazo, tiro glória
De minha anulação."
(Eu, etiqueta - Carlos Drummond de Andrade)


Difunde-se em nossa sociedade, sem qualquer pudor, que vivemos num Estado Democrático de Direito. Democrático porque o poder, em tese, provém do povo; de Direito, porque as leis jurídicas regulam a relação que estabelecemos com os nossos concidadãos. Se esse discurso é verdadeiro, por que receamos em dizer o que pensamos, sentimos e valorizamos no local de trabalho, escola, ambiente familiar, etc.?

Essa forma inusistada de agir talvez tenha inspirado o poeta Vinícius de Moraes a dizer, no poema “O dia da criação”, que “os bares estão repletos de homens vazios”. Vazios talvez, mas o bar ainda é o lugar onde se pode dizer o que se pensa. Lá as pessoas são elas mesmas. Com uma ou duas na cabeça, mas elas mesmas. Pode-se xingar o mau patrão, falar mal da mulher lamurienta ou do marido desatento, criticar o professor chato e preciosista, e, com uma dose de ousadia, até se declarar insatisfeito com a opção sexual adotada.

Mas por que, em qualquer outro lugar (até na internet), tememos ser nós mesmos? Afinal o livre pensar tem ou não amparo na legislação pátria, em forma de princípio constitucional? Por que então curvamos a cabeça e falamos baixinho como se vivêssemos em pleno regime de exceção?

Partindo dessas premissas, penso que a questão que merece a nossa atenção não é se somos ou não livres, mas "o motivo de a liberdade não ser um valor para nós". Que tipo de pedagogia é essa que, em vez de nos estimular a prática de atos livres, nos faz temer a liberdade? O mais intrigante é que esse medo não é prerrogativa das pessoas com baixa formação acadêmica ou de níveis sociais e econômicos menos abastados. É um fenômeno que parece atingir a todos indistintamente.

Sem dar a devida atenção para esse fato, as nossas escolas, hipocritamente, alardeiam aos quatro ventos que objetivam formar "cidadãos críticos e autônomos", capazes de se lançar ao desconhecido em busca de novas experiências, vivendo para além das condições dadas cotidianamente. Ao revés, utilizam metodologia capaz unicamente de produzir seres mediocremente rotineiros; habilitados (e sem demonstrar qualquer inquietação) em aceitar a realidade dada, inserindo-se obedientemente num fluxo de acontecimentos que parece estar além das suas capacidades de deliberação. São “educados” para a obediência. Pior, são “educados” para GOSTAR da obediência e reconhecer nela o único caminho capaz de propiciar uma vida tranqüila e feliz.

Qualquer outra hipótese é sinônimo de transgressão, desordem, desarmonia, etc. Ficamos suscetíveis aos diversos castigos que os sistemas disciplinares possuem em nossa sociedade. Desde cedo esses mecanismos de contenção da conduta nos são ensinados e assim os internalizamos como justos, legítimos e necessários para o estabelecimento da ordem na vida gregária. Aprendemos, sem um exame acurado dos fatos, a temer a ocorrência do que nos causa dor e a desejar aquilo que nos afasta dela. Trocamos, assim, “voluntariamente” a possibilidade de experimentar a vida, de fazer com ela experiências de pensamento e ação, pela promessa de um conforto decorrente da posse de outros bens. Em outras palavras, somos gradativamente seduzidos pela promessa de felicidade, sem nos voltar reflexivamente para os motivos e fins do caminho que percorremos.

Institui-se, assim, uma pedagogia voltada para o cultivo do medo, ante o exercício da liberdade. Esta nos é apresentada como algo menos importante que um “prato de comida”. Como, desde os verdes anos, não cultivamos o gosto, nem reconhecemos a importância da liberdade, facilmente alienamos a nossa capacidade de produzir vivências, de elaborar novas relações e experiências com os acontecimentos. Trocamos o medo do desconhecido pela promessa de aquisição de bens conhecidos. De fato, como a liberdade pode ser um valor maior que um “prato de comida” se jamais a experimentamos? Nos ensinam, precocemente, que ela não tem valor prático. Que ela não mata a fome, não sacia as pulsões sexuais, não nos abriga das intempéries. E ainda, ao longo da vida, somos dissuadidos pelos exemplos que nos mostram os perigos do seu exercício. Ensinam-nos a conceber a liberdade como uma mera abstração, inferior às coisas concretas, com seus cheiros, cores e sabores. Parece que só os artistas e filósofos a amam e a inserem em seus “mundos paralelos”. No mundo “real”, não convém educar para o que não tem um sentido pragmático. A escola precisa nos colocar ante a realidade concreta e tangível para nos transformar em verdadeiros cidadãos.

Como a liberdade não é um valor para o sistema educacional de nossa sociedade, nós a trocamos por qualquer “prato de comida” e a alienamos com vistas a outros bens que nos garantam segurança e conforto. Mas, será essa troca legítima e digna de nós seres humanos? A liberdade, de fato, possui ou não algum valor?

Ora, se a repulsa à liberdade não é congênita (da natureza dos seres humanos), mas resultado de um processo cultural de adaptação e controle, como creio, há de se supor que ela decorra da relação ensino-aprendizagem, que é a característica dos processos educacionais em qualquer sociedade humana. Logo, podemos pensá-la a partir dos dois pólos que a compõe: Do ponto de vista de quem a ensina e do ponto de vista de quem é instruído. Partindo da infância do homem civilizado (quando a razão ainda não preside as suas ações) encontramos um procedimento comum, do ponto de vista metodológico, encetado pelo “professor”: procura-se conter a conduta do “aluno”, desenvolvendo-lhe certos sentimentos ante a realidade. O “professor” cria um discurso capaz de garantir que o “aluno” faça aquilo que por ele é querido. Assim, introduz-se o MEDO como instrumento pedagógico. O bicho-papão e todos os mitos cosmogônicos nisto se assemelham. Explicam os fenômenos e ao mesmo tempo condicionam o homem, segundo a vontade de quem detém o poder político. Em outras palavras, ENSINA-SE PARA CONTROLAR. Política e educação, desde o princípio, andam juntas.

*
"Boi, boi, boi, boi da cara preta,
Pega essa criança que tem medo
De careta.
Boi, boi, boi, boi do Piauí,
Pega essa criança que não gosta
de dormir"
*

Com o passar do tempo o homem entra na adolescência e os louros da razão principiam aparecer. Neste momento, há o reconhecimento – agora lógico - da existência de limitações (sistema de regras) que impõe deveres e obrigações. No plano individual, a moral cumpre o seu papel limitador; no coletivo, surge o Estado, com as regras jurídicas, para propiciar o bem e afastar o mal. Tem-se aí o amparo psicológico necessário para consolidar essa transferência de poder e a consolidação do medo – agora intelectualmente apreendido – por meio dos diversos sistemas disciplinares incorporados ao patrimônio psicológico do sujeito. A família, Escola, sociedade civil e a igreja cumprem esse "papel pedagógico". Tudo funciona como numa sociedade de escambo. Dá-se algo em troca de outro bem desejado. Mas o que essas instituições querem de nós em troca de tantos bens necessários a uma boa vida? Não seria a OBEDIÊNCIA aos ditames do sistema esse bem precioso, isto é, a alienação da nossa liberdade?

Mas como esse bem pode ser a liberdade se, como foi dito alhures, a trocamos por um simples “prato de comida”? Sequer temos a oportunidade de com ela nos acostumar. Mas, se é esse o bem que os detentores do poder querem, chegamos a uma dúbia conclusão. A liberdade é valiosa para uns e não o é para outros. Quem a tem em alta conta e, a todo custo, quer limitá-la são os poderosos. Quem a despreza, os dominados. Se este raciocínio logra algum sentido, podemos inferir que a liberdade tem a sua importância recuperada, porém pelos inquilinos do poder. Estes sabem que o seu exercício ameaça aquilo que mais lhes interessa: a manutenção das funções de mando na sociedade e a posse de bens materias. Por isso se empenham em financiar uma pedagogia voltada ao cultivo da dependência, da suborndinação e do medo. Patrocinam, desde os verdes anos, o condicionamento dos "educandos", estimulando-os a não ansiar pela busca de novas experiências. Por outro lado, ainda reprimem aqueles que se mostram indóceis a esses ensinamentos.

Chegamos assim ao ponto crucial da nossa caminhada. Podemos, enfim, dizer que a liberdade é um bem como outro qualquer, suscetível de manipulação pelo homem. Não a valorizamos porque não a experimentamos e não adquirimos a dimensão prática da sua importância. Depois somos vítimas de um processo educacional que naturaliza a busca irrefreada por outros bens considerados mais importantes para uma boa vida. Tudo ocorre sem que percebamos a interferência dos interesses políticos e econômicos que subjazem às ações humanas. Por isso não percebemos que a troca da liberdade por conforto e segurança é falsa, ilusória e totalmente desvantajosa a quem a realiza, porque não há garantia quando as decisões não nos pertencem. E se o poder de intervenção no curso dos acontecimentos foi transferido, a qualquer momento e sem permissão a nossa vida pode ser modificada de uma forma contrária aos nossos interesses.

Essa pedagogia não é mais que uma falsa pedagogia ou contra-pedagogia, porque ela presta um desserviço ao homem, salvo àqueles que dela consomem os frutos.

Por isso os filósofos e artistas se conflitam com os poderosos, porque percebem que não há ingenuidade nas ações humanas. Desmistificam os instrumentos ideológicos que estão a serviço destes, trazendo à baila as contradições da forma de existir humana. Desbanalizam os artifícios criados para enfraquecer o homem e que o torna presa fácil de si mesmo.

P.S. - Texto dedicado aos queridos alunos do curso de Licenciatura em Pedagogia do IFPA.