domingo, 14 de julho de 2013

O pensamento pedagógico de Platão (Ou ”A razão como critério educacional”)


 
Os outros animais, ao nascerem, recebem, em seu código genético, tudo que é necessário para viverem neste mundo. O homem, ao revés, é um ser incompleto, logo precisa ser EDUCADO para alcançar a excelência na forma de agir. Para a elite grega, esse nível de comportamento, teria como pressuposto o bom uso daquilo que caracteriza o homem, a RAZÃO, pois somente com a utilização adequada desse instrumento ele seria capaz de controlar as paixões e alcançar a EUDAIMONIA - que hoje, precariamente, traduzimos por FELICIDADE.

E para a realização da eudaimonia Platão concebeu a necessidade de a cidade ser JUSTA e os cidadãos VIRTUOSOS. Mas o exercício da virtude exige que os homens utilizem corretamente a RAZÃO para não tomar o ilusório como verdadeiro. E como a verdade é UNA, há de se supor que numa cidade governada pelos mais aptos intelectualmente não haveria disputas internas, nem partidos políticos, pois todos chegariam ao conhecimento da realidade e aplicariam a justiça (bom governo).

Vê-se claramente que para falarmos da educação em Platão, precisamos navegar pelo pensamento POLÍTICO, ÉTICO, EPISTEMOLÓGICO, PSICOLÓGICO e METAFÍSICO do filósofo.

Do ponto de vista psicológico, a cidade justa não seria norteada por princípios igualitários ou democráticos, mas seria dividida em estamentos, de acordo com as características intelectuais de cada cidadão. Estas características aflorariam de acordo com a parte da alma (dividida por Platão em três) que preponderasse sobre as demais. Se a parte concupiscente se sobrepujasse, o cidadão seria da classe dos artesãos; no caso de a parte irascível se impor, o cidadão pertenceria à classe dos militares; já a supremacia da parte racional da alma seria própria dos que deveriam exercer o governo da cidade. Assim, cada um cumpriria com o que a sua vocação determinasse para que o todo funcionasse como uma máquina bem aprumada. A preocupação do filósofo é com a vida coletiva. Por isso a eudaimonia está para a vida pública, como a felicidade (no sentido moderno) está para o ambiente privado.

Porém, mesmo sendo a realidade UNA e os sábios capazes de intuí-la, o que garantiria que na cidade platônica não existiriam dissidências, gerando partidos políticos e até uma guerra civil?

A resposta para essa questão tem cunho EPISTEMOLÓGICO e se baseia no princípio da ética socrática, segundo o qual “CONHECIMENTO é VIRTUDE”, isto é, quem conhece sempre age corretamente, na direção do BEM, com vistas ao que lhe é proveitoso. Em outros termos, somente age mal quem ignora. Desta forma, não existiriam desacordos políticos se os cidadãos, pelo menos os mais aptos, fossem educados para o conhecimento da verdade, ou seja, se se tornassem filósofos.

Ora, se os governantes-filósofos sempre agiriam no sentido do BEM, Platão, em “A República”, dedicou-se a demonstrar como eles seriam capazes de conhecer o real (a verdade) e assim não praticariam a injustiça pensando ser a justiça, nem divergiriam sobre o que ela é. A demonstração disso constitui o projeto pedagógico do filósofo.

A EDUCAÇÃO objetivaria formar o cidadão para a Pólis.

É oportuno lembrar que Platão viveu em Atenas, durante a tirania dos trinta, logo após a guerra do Peloponeso e a queda de Péricles, quando imperava a “democracia” como regime político. A sua crítica à Democracia se deve tanto pela irracionalidade do sistema, como pelo individualismo e espírito materialista que naquele momento imperava. Talvez por isso o espírito coletivo de Esparta lhe tenha servido de modelo. Na cidade ideal o governante-filósofo seria o agente capaz de fazer boas leis que garantiriam a harmonia e a superação das contradições existentes.

Platão parte do fato de a atividade racional ser capaz de organizar o pensamento com base em uma tradição, sempre com vistas ao UNO (que tem caráter universal), logo se opondo ao pensamento que tem natureza PARTICULAR e que se fundamenta nos interesses e nas conveniências humanas (Senso Comum).  

Quem está em nível empírico compreende o certo e o errado em termos do que dá LUCRO, do que faz BEM e do que é BOM para si próprio, contrariando os objetivos coletivistas da filosofia platônica, que tem como escopo o bem COLETIVO, enquanto o que sintetiza todos os interesses em um só.   

Com o Mito da Caverna, que está no Livro VII de “A República”, Platão explica como o indivíduo que está no mundo sensível (fundo da caverna) constrói uma visão SECTÁRIA do mundo, na qual as coisas são vistas segundo os seus interesses. Uma árvore, por exemplo, é vista a partir dos frutos, da sombra e da madeira que propicia ao homem; jamais a partir da função que exerce no cosmos. Surge, assim, um desrespeito pelas coisas do mundo, característico da visão demagógica.

No Mito, o projeto pedagógico/filosófico platônico é representado pelo prisioneiro que se livra dos grilhões e sai da caverna contemplando as coisas como elas, de fato, são. Essa passagem da alegoria expressa a necessidade que o homem educado tem de abandonar o que provem dos sentidos para, por um processo de anamnese ou reminiscência, contemplar a realidade que está no mundo das formas.

Embora a contemplação da realidade exija um grau de abstração, Platão não exclui da cidade o prazer (hedonismo), mas o coloca sob os ditames da razão para que o seu exercício não alimente o sectarismo, que é um obstáculo para a busca do BEM.

É oportuno lembrar que o BEM não deve ser compreendido no sentido moral, mas ONTOLÓGICO, enquanto princípio que guia o homem na contemplação do cosmo e cuja essência é o UNO, ou seja, o que reúne o múltiplo na unidade. Isso significa que Platão antecipa aquilo que o homem moderno, inexoravelmente, perceberá: que apenas há ciência (episteme) do UNIVERSAL. A opinião (doxa) ou senso comum está adstrito ao particular. 

Isso explica porque quem vive no âmbito empírico (do que agrada) tende ao sofrimento, haja vista os objetos individuais/concretos estão sujeitos ao DEVIR, logo o que é prazeroso hoje, certamente amanhã não o será. Já os prazeres da alma são permanentes e estáveis por dependerem dos seres que estão no mundo inteligível, que não se alteram por estarem ligados ao UNO.

O conhecimento verdadeiro (episteme) permite a ação virtuosa na Pólis. Como visa o que é estável, permite harmonizar os diversos elementos que compõe o complexo humano com vistas à JUSTIÇA, que se assemelha ao BOM e ao BELO. A cidade justa é a cidade equilibrada. Aquilo que no “Protágoras” aparece como a virtude de medir; em “A República”, Platão chama de a virtude da temperança, que é uma espécie de ordem e de domínio entre os prazeres e apetites.

É nesse contexto que a cidade justa para Platão deve garantir “aquilo que é devido a cada pessoa, segundo a sua natureza”, posto que assim os homens, que não são iguais do ponto de vista de suas potencialidades, possam exercer, na cidade, as funções que melhor desempenham para o bem de todo o organismo social.

A EDUCAÇÃO, assim, possuiria um escopo político. Por isso ela não deveria uniformizar os cidadãos, mas teria a função de fazer brotar aquilo que a natureza de cada indivíduo permitir, de acordo com o interesse social. O filósofo seria a expressão mais elevada desse ideal pedagógico, por ser o indivíduo apto a guiar os demais para a contemplação do BEM (representado pela luz do sol na alegoria da caverna).    

Esse projeto, segundo Platão, estaria ameaçado pela ação dos demagogos, que são indivíduos que não estão preocupados com a verdade (episteme), mas com o que agrada (doxa, opinião), assim não estariam comprometidos com a harmonia da cidade, mas visariam benefícios pessoais por meio da manipulação das massas (os prisioneiros da caverna). Por esse motivo Platão concebe a EDUCAÇÃO como uma atividade que tem um objeto específico, as FORMAS (eidos), enquanto entidades que funcionam como modelos, paradigmas, por não estarem sujeitas à mudança.

Mas as FORMAS somente são perceptíveis pelo intelecto. No mundo inteligível existiriam formas de objetos concretos, valores morais e estéticos, e até de entidades matemáticas. Assim, a frase “o dedo indicador é grande” está correta quando o dedo indicador é colocado diante do dedo mínimo, mas não se mantém correta quando o dedo indicador é posto diante do dedo médio. Isso prova que dependendo do contexto o dedo indicador poderá ser pequeno ou grande, logo não se pode adquirir conhecimento quando se trabalha com elementos particulares e sensíveis, cujo resultado, dependendo da situação, oscila. O conhecimento, neste caso, reclama pela busca da forma da grandeza. Da grandeza em si.    

Para explicar o processo de educação dos que seguirão para o conselho dos sábios, Platão, no Mito da Caverna, faz as distinções entre o mundo INTELIGÍVEL e o mundo SENSÍVEL. Este mito relata que os homens estariam no mundo sensível, que não é uma realidade perfeita. Andam, comem, dormem – assim vivem no mundo que é continuamente mutável, do fluxo das alternâncias, mas podem, se tiverem um treinamento adequado, captar o que está na realidade não sensível, no mundo real daquilo que não muda: o lugar das formas  

A pedagogia filosófica é, portanto aquela que impulsiona o homem aos UNIVERSAIS, tomando-se como real, sabendo, então, que o sensível, ainda que existente, é ilusório. Esse processo se iniciaria com o estudo da matemática e alcançaria um grau maior de abstração na dialética, que, segundo Platão, viabilizaria a visão das formas.

Sem o amparo do conhecimento das formas, que são entidades objetivas (não devemos confundir com os pensamentos humanos, que são subjetivos), surge um campo favorável a atuação dos demagogos. Neste momento, o critério utilizado não é o de quem sabe, mas o de quem agrada, o que, no campo político, objetiva angariar o apoio da maioria pelo viés do que é conveniente, porém transitório.

Não é difícil entender porque Platão não simpatizava com a Democracia, onde o critério para as decisões é o da maioria, logo um campo fértil para a manipulação, onde as ações visam o que AGRADA a maioria. Nesse regime a racionalidade não determina as ações necessárias para o bom funcionamento da cidade, mas vence o pensamento que atende aos interesses da maioria. É previsível, nesse contexto, que as coisas tendam ao caos, facilitando o aparecimento do SALVADOR DA PÁTRIA, ou seja, do tirano.

Em contraposição, Platão considera a EDUCAÇÃO como instrumento de resistência a toda sorte de controle social pelas ações demagógicas. Se as pessoas pensassem por conta própria, tirando de dentro de si mesmas a compreensão das coisas do mundo, não se moveriam por INTERESSES, mas por PRINCÍPIOS racionais, e, como os filósofos, seriam guiadas pela idéia suprema do BEM.

No prisma da visão totalizadora do pensamento platônico, tudo que une é bom e tudo que separa (sectarismo) é ruim. Assim, EDUCAR é tirar de dentro o conhecimento. Ver as coisas como são. Jamais como queremos que sejam. Platão não separa a filosofia da política, da pedagogia e da arte, porque educar é fazer com que cultivemos aquilo que é próprio dos seres humanos, isto é, o pensamento racional, como condição para uma vida gregária equilibrada.   

terça-feira, 2 de julho de 2013

O amor platônico (Ou "O amor não faz o amante, mas o sábio")


Em geral as pessoas falam em Amor Platônico, referindo-se, vagamente, a um sentimento no qual há ausência de interesses e gozos materiais, como um fenômeno de natureza estritamente espiritual. Com algum esforço e muita leniência essa definição pode ser aceita. A rigor, o Amor Platônico é muito mais que isso e, neste pequeno artigo, espero, de forma simples e sucinta, superar esse mal entendido.

Mas para compreendermos o nosso objeto precisamos, antes, dominar algumas noções da metafísica, psicologia e epistemologia platônicas.

Para o filósofo o mundo real não é este que captamos pelos sentidos, mas o que está no “mundo das ideias (ou das formas)”. Os entes verdadeiros que habitam nesse mundo somente podem ser conhecidos pela alma humana, posto que conviveu com eles antes de se aprisionar em um corpo.  A incorporação desvanece a  contemplação que ocorreu no mundo das formas, e para recuperá-la é necessário um esforço intelectual. Por isso Platão considera o conhecimento como reminiscência (lembrança). Mas, trazer à memória o que foi conhecido no mundo inteligível não é tarefa fácil, porque o corpo, sede das paixões e desejos, engana e dificulta a percepção direta dessas essências. Esta é a inglória tarefa do filósofo. 

Apesar de tudo, a alma humana, mesmo quando habita um corpo, aspira por essa contemplação originária que realizara no mundo das ideias. Por isso há uma espécie de tendência ou inclinação do homem pelas coisas verdadeiras, isto é, pelas coisas em si (BEM, JUSTIÇA, BELEZA, etc.), capazes de conduzí-lo à felicidade. Para tanto, é preciso elevar-se deste para o mundo supra-sensível.

É assim que EROS constitui a força mediadora entre o sensível e o inteligível, num movimento que a alma realiza com vistas à ligação originária com o mundo das idéias. E o verdadeiro amante, para percorrer esse caminho que nos afasta do corpo e nos leva à percepção das coisas em si, precisa, no sentido epistemológico (do conhecimento), ser VIRTUOSO, ou seja, precisa ter espírito filosófico.   

Mas isso não quer dizer que Platão despreze o amor físico, como muitos incautos pensam. Ele apenas o considera num nível inferior de manifestação da alma. Amamos o que é sensível porque este plano, enquanto cópia, nos remete à perfeição que existe no mundo das ideias, constituindo um caminho para atingir aquele plano superior de existência. Um belo corpo, por exemplo, participa da ideia de beleza em si, que somente existe no supra-sensível. 

Um nível mais elevado de relação amorosa ocorre quando o homem se relaciona com os seres que são diretamente intuídos pelo espírito, como as ideias de justiça, lei, ciência, etc. Convém lembrar que no "mundo das ideias" também existem as formas perfeitas de coisas não tangíveis. Esses seres igualmente nos remetem aos seus correspondentes verdadeiros, porém com mais eficiência que os objetos da sensibilidade, visto que não são suscetíveis às influências negativas do corpo.

No cume da escala da relação amorosa está o amor pelas COISAS EM SI, que não são provenientes do espírito nem do corpo, mas que estão no mundo das ideias como entidades objetivas. Este é um tipo de amor quase divino. A alma o experimenta quando se desliga totalmente do corpo. Por isso sua realização é própria dos homens capazes de ascender, pelo exercício da dialética, ao mundo das ideias. É uma realização tão elevada e difícil que Platão a considera como um apanágio dos deuses.

Eis que o amor platônico é uma espécie de NOSTALGIA DO ABSOLUTO, desejo de perfeição, tensão mediadora que torna possível a elevação do sensível ao supra-sensível, força que tenta conquistar a dimensão do divino. Em contrapartida, e em sentido oposto, o Amor Cristão (ágape) é DESCIDA de Deus em direção dos homens. Não é conquista, mas dom. Não é algo motivado pelo valor do objeto ao qual se dirige, mas, ao contrário, algo espontâneo e gratuito.

Para os gregos é o homem quem ama, não Deus. Para os cristãos é, sobretudo, Deus que ama: o homem somente pode amar na dimensão do novo amor realizando uma revolução interior radical e assemelhando o seu comportamento ao de Deus.

Pela gratuidade e ilimitude que o amor cristão expressa não há diferença alguma entre amar um ladrão ou uma pessoa honesta, posto que devemos “amar o próximo como a nós mesmos” para nos aproximarmos do propósito moral cristão. Essa é a realização extraordinária que este tipo de amor impingiu à cultura ocidental, visto existir uma desproporção flagrante entre o dom e o beneficiário dele. O perdão e a misericórdia são os principais componentes dessa revolucionária forma de existir no mundo.

De Adão e Eva à Genoíno e José Dirceu, todos os seres humanos são filhos de Deus e dignos do seu amor, afinal, é a imperfeição humana que nos faz amantes. É preciso, pois, ser VIRTUOSO para vivenciá-lo. No sentido platônico, conhecendo a verdade; no cristão, perdoando os pecados alheios.